Título: Credo quia absurdum
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2004, Brasil, p. A2

Os novos prêmios Nobel de Economia, professores Edward C. Prescott (1940), americano, e Finn E. Kydland (1943), norueguês, têm colaborado entre si e com a Universidade de Minnesota desde o fim dos anos 70. A Academia Real de Ciências da Suécia chamou a atenção para o trabalho conjunto dos economistas em dois artigos seminais: 1. "Rules rather tham discretion: the inconsistency of optimal plans" (Journal of Political Economy, June 1977: 473-491) e 2. "Time to build and aggregate fluctuations" (Econometrica, 1982: 1345-1370), que realmente abriram novos campos de pesquisa. São dois trabalhos muito interessantes. O primeiro é freqüentemente citado como tendo produzido o mais forte argumento a favor da "independência" ou, numa forma mais apropriada, a "autonomia operacional" dos Bancos Centrais, pois ele cuida do problema da "inconsistência temporal da política econômica", que ocorre quando o agente por ela responsável não tem o incentivo ou lhe falta integridade para honrar os compromissos assumidos. O problema é geral e ocorre, por exemplo, quando o governo dá estímulo a uma política industrial e quando ela está produzindo seus efeitos ele o cancela para aumentar sua receita; quando ele estimula com câmbio sub-valorizado algumas atividades que precisam de anos para adquirir "vantagens comparativas" e abandona o projeto antes delas maturarem... O fenômeno é sempre o mesmo: um compromisso é abandonado quando um comportamento oportunístico produz algum resultado melhor no curto prazo. No caso do Banco Central, por exemplo, ele se compromete com uma política anti-inflacionária que começa a produzir seus efeitos: queda da taxa de inflação contra uma redução do crescimento econômico. No meio do caminho (por conta de uma eleição, por exemplo), a autoridade é tentada a aproveitar a queda já obtida da inflação e, oportunisticamente, acelerar o crescimento afrouxando a política monetária. A sua aplicação ao problema do Banco Central se deve ao fato que este é o exemplo formulado pelos autores, que foi complementado e simplificado num trabalho subseqüente de dois excelentes economistas, R.J.Barro e D.B.Gordon ("A Positive Theory of Monetary Policy, 1983: 586-610). Evidentemente, quando os agentes são "racionais" (levam em conta o comportamento futuro) e as autoridades não têm "credibilidade", o exercício da política econômica está destinado a obter resultados sub-ótimos. A "inconsistência inter-temporal" quebra a confiança dos agentes econômicos e pode levar a uma maior taxa de inflação juntamente com um aumento de sua variabilidade. O que nos parece também inconsistente é usar esse argumento para sustentar a "autonomia operacional" do Banco Central de modo universal: independentemente do tempo e do espaço. Como toda instituição humana ele tem de ser sujeito a controles internos e externos e sua política tem que ser escrutinizada cuidadosamente pelo Congresso e pela comunidade acadêmica, comparando os seus custos sociais com o das políticas alternativas. O que não se deve, em nome da boa lógica, é criticá-lo pelo fracasso de obter, por exemplo, uma "meta inflacionária" extremamente ambiciosa, como tem acontecido no Brasil. A falcoada empoleirada no Banco Central é competente e tem o sentido de "missão". Nossa sorte é que sua política está se tornando irrelevante para o setor privado que paga seus financiamentos com imensos "spreads" (múltiplos da taxa SELIC). O seu efeito pode ser psicológico, introduzindo dúvidas no "espírito animal" dos empresários que estão tomando os riscos dos novos investimentos ou assustando os consumidores com o desemprego futuro. Ela é mortal, entretanto, para a política fiscal porque eleva o custo da dívida do Tesouro, o principal indicador da saúde nacional na opinião dos credores.

Sorte é que política do BC está virando irrelevante

O segundo trabalho a que nos referimos, desenvolve e explora o que hoje se chama "teoria dos ciclos econômicos reais". Este nome foi dado por J.Long e C.Ploser num artigo "Real Business Cycles (Journal of Political Economy, 1983). A idéia fundamental que informa os prêmios Nobel é que, na realidade, não existe "ciclo": as flutuações que percebemos na atividade econômica são reações de agentes com expectativas racionais, que reagem às flutuações do nível de produtividade física do sistema econômico maximizando um "bem estar" através de mercados que estão permanentemente em equilíbrio instantâneo. O modelo é o limite superior do neo-classicismo! A rigor não existe um "produto potencial": cada observação é conseqüência de ações racionais dos agentes que maximizam sua utilidade em resposta às flutuações da produtividade da economia. O desemprego (voluntário) só ocorre para maximizar o bem estar do trabalhador! O modelo não é linear e os autores utilizam um método de "calibragem dos parâmetros". Como "choques de produtividade" utiliza-se o resíduo de Solow (o que as funções de produção deixam de explicar). O gráfico abaixo mostra o crescimento do PIB real dos EUA e o estimado por C.Ploser usando o modelo. Este "explica" 2/3 das flutuações observadas. Apesar do aparente sucesso, a teoria está longe de ser aceita pacificamente pela profissão. Com tal modelo e para salvar a "teoria" só dizendo como Santo Agostinho: "Credo quia absurdum", ou de forma mais cômoda, "creio porque é impossível"...

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP e ex-Ministro da Fazenda. Escreve às terças-feiras.

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