Título: Entre o populismo tarifário e o superávit fiscal
Autor: Adriano Pires e Rafael Schechtman
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2004, Opinião, p. A8

Regras do leilão de energia podem levar a preços deprimidos

O primeiro leilão de energia elétrica proveniente de empreendimentos existentes (a chamada energia velha) do novo modelo do setor elétrico será realizado na segunda quinzena de dezembro. Pelas regras estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia (MME), o leilão será do tipo reverso, em que o comprador define as características do produto a ser adquirido e os vendedores oferecem lances decrescentes para o preço do produto, até que um lance mínimo de fechamento seja atingido. Serão ofertados cinco produtos, diferenciados pelo ano de início e pela duração dos contratos de suprimento a serem celebrados: contratos com início de suprimento em 2005, 2006 e 2007 e duração de oito anos, e contratos com início em 2008 e 2009 e duração de cinco anos. O leilão será realizado pela internet e utilizará um sistema eletrônico. A quantidade (montante total de energia) de cada produto só será conhecida pelos proponentes durante o leilão. Este dado será determinado pelo MME, com base em informações fornecidas pelas distribuidoras de energia sobre a demanda prevista e os contratos de compra já celebrados para os próximos cinco anos. A sistemática do leilão contempla mecanismos para garantir que não haja a colusão entre vendedores, e para forçá-los a reduzir seus preços. Um deles é a fixação pelo MME de um preço máximo (preço de reserva) para cada produto, que aparentemente não será divulgado pelo ministério. Outro mecanismo é a realização do leilão em duas fases. Na primeira fase, o MME adicionará um percentual de sobredemanda a cada produto. Haverá rodadas sucessivas para disputar a quantidade ofertada. Na segunda fase, será retirado o percentual de sobredemanda e haverá apenas uma rodada de fechamento. O primeiro problema dessa sistemática de leilão é não permitir uma interação entre preços e quantidades. Ou seja, o MME considera as quantidades demandadas insensíveis aos preços de fechamento do leilão. Como as estimativas de demanda das distribuidoras estão relacionadas a um cenário de preços, que pode ser consideravelmente distinto daquele prevalecente no leilão, estar-se-ia fomentando, no médio prazo, uma situação de desequilíbrio entre oferta e demanda. Na sistemática, não se sabe ao certo se os preços máximos e os lances dos outros vendedores estarão disponíveis em algum momento para consulta. Tampouco estão explícitas quais as regras que nortearão a fixação do preço de reserva pelo MME. Essa falta de detalhamento e transparência das regras do leilão enseja uma certa desconfiança, particularmente ao se considerar que a tomada de decisão está centralizada no MME, que é, ao mesmo tempo, formulador de políticas, poder concedente, responsável pela elaboração das regras do leilão e membro do conselho de administração das estatais federais que concorrerão na disputa, com 70% da energia ofertada.

Uma estratégia de preços baixos afetaria a geração de caixa das estatais e suas contribuições para o esforço fiscal

Dada a conjuntura de oferta excedente no curto prazo, a maior preocupação é que, por exemplo, os leilões conduzam a preços deprimidos que não sinalizem com incentivos para construção de novas usinas. Nossas estimativas mostram que o sistema de geração dispõe de cerca de 28 GW médios disponíveis para serem contratados ao longo dos próximos cinco anos por intermédio deste leilão. Considerando-se a previsão de crescimento da demanda de energia e o vencimento dos contratos atualmente vigentes ao longo desse período, pode-se antever que ficarão descontratados cerca de 7,5 GW médios em 2005, 6 GW médios em 2006, 3 GW médios em 2007 e 0,6 GW médios em 2008. Essa ameaça é potencializada novamente pela referida ambigüidade dos papéis desempenhados pelo MME. Não é de hoje que a utilização das estatais para busca de objetivos de curto prazo é prática no Brasil. No caso do setor elétrico, o próprio MME já fez repetidas promessas de que o novo modelo garantiria "energia barata" aos consumidores. Outro fato que preocupa é a decisão do MME de escolher o IPCA para corrigir os futuros contratos de compra e venda entre distribuidoras e geradoras a partir do leilão. Além de aumentar o risco regulatório, essa medida poderá provocar um descasamento de receita das empresas estão financiadas em IGP-M e esse risco, obrigatoriamente, deverá ser repassado ao custo final da energia. A possibilidade do uso das estatais federais como instrumento de "modicidade tarifária" esbarra, contudo, nos compromissos assumidos de crescente superávit primário nas contas do setor público. Uma estratégia de preços baixos afetaria a geração de caixa das estatais por vários anos e suas contribuições para o esforço fiscal. O resultado do embate entre esses dois objetivos contrastantes da política governamental, o do populismo tarifário e do rigor fiscal, será o elemento que efetivamente irá determinar o patamar de preços a serem fixados pelas geradoras federais e o próprio preço máximo do leilão. Apesar do "manto" de concorrência e imparcialidade que comanda a sistemática do leilão, o setor elétrico continua na realidade submetido a práticas muito distintas dos fundamentos de uma economia de mercado. A sistemática do leilão confirma a proposta não explícita do novo modelo, ou seja, a expansão da oferta de energia elétrica ficará, basicamente, sob a responsabilidade das empresas estatais.