Título: É preciso mudar as leis 4.595 e 6.024
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 29/07/2005, Brasil, p. A2

Por má legislação, incompreensão ou descuido, o Banco Central sempre é alvo de críticas das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), quando investigam grandes somas de dinheiro que passaram pelo sistema bancário. Como órgão supervisor das instituições financeiras, o BC deveria ter visto com desconfiança, por exemplo, os vultosos depósitos e saques nas contas de Marcos Valério no Banco Rural, agora conhecidos da CPI dos Correios. E já deveria ter punido com intervenção ou liquidação essa ou aquela casa bancária que realizou operações para esquentar ou lavar dinheiro. Sem eximir o BC de seus erros, porém, é preciso avaliar com mais profundidade esses dois blocos de críticas. Com relação aos empréstimos concedidos pelo Banco do Brasil, BMG e Rural, apurados pela CPI, ao PT e às empresas de Marcos Valério, a primeira providência da supervisão bancária é avaliar, através da fiscalização, a qualidade dos empréstimos e suas garantias. Se forem considerados de difícil recebimento, o BC determina que os bancos façam provisão. O BC não confirma se já cumpriu essa etapa, mas fontes oficiais garantem que sim, e, no caso do BMG, o próprio banco já comunicou que, atendendo à determinação do BC, já provisionou os créditos ao PT. A rigor, o BC só entra numa instituição para liquidá-la em duas situações: se ela tiver com sérios problemas de liquidez; ou com o patrimônio líquido negativo. Em outras ocasiões, o BC liquidou bancos por estarem cometendo irregularidades em relação às boas práticas bancárias e às normas da instituição. Isso gerou demandas judiciais dos bancos afetados, que representam indenizações milionárias para os antigos donos. No balanço de 2004, o BC fez provisão de R$ 4,9 bilhões por causa dessas demandas judiciais. Exemplo de decisão a favor do banqueiro é o caso do Vetor, liquidado durante a CPI dos precatórios (em 1997), que ganhou na Justiça o direito a uma indenização, a ser paga pelo BC, de R$ 174,18 milhões corrigidos, além da suspensão da liquidação extrajudicial. O risco de ter que pagar indenização quando a liquidação não ocorre por situações bastante objetivas - falta de liquidez ou patrimônio negativo - leva a uma outra discussão que pode ser uma boa conseqüência da CPI dos Correios. É preciso uma legislação melhor para proteger o órgão de supervisão bancária na sua função de cuidar da integridade do sistema financeiro e da segurança dos depositantes. Ou seja, é preciso promover mudanças das leis 4.595 (de 1964, que criou o BC), e da lei 6.024 (de 1974, que gere as liquidações de instituições financeiras). A legislação atual deixa os diretores do BC desprotegidos como pessoas físicas, quando a intervenção ou liquidação é contestada na Justiça. Os demandantes entram contra a instituição e contra a pessoa do diretor responsável. Isso leva, inexoravelmente, a uma cautela excessiva que, não raro, se traduz em intervenção ou liquidação tardia. Aliás, um dos pilares do acordo de Basiléia II é o órgão de supervisão bancária, assim como seus dirigentes, como pessoas físicas, terem segurança jurídica para a tomada de decisões.

Toda CPI coloca o BC na berlinda

A lei 6.024 não tipifica com clareza o que são más práticas bancárias e gestão temerária, que podem levar uma instituição à liquidação, deixando espaço para tomada de decisões de forma subjetiva. Há uma proposta de projeto de lei já preparada pelo BC, que muda essa legislação, inclusive para definir de forma clara os crimes que cercam uma gestão temerária. Para iniciar uma discussão sobre essas questões legais, o presidente do BC, Henrique Meirelles, teve, nesta semana, uma conversa com o presidente da CPI dos Correios, senador Delcídio Amaral (PT-MS) e colocou o corpo técnico do BC à disposição da comissão para contribuir com propostas para aperfeiçoar a legislação, ao fim das investigações. Outro aspecto que a CPI trouxe à tona não é flagrado pela legislação da lavagem de dinheiro. Enquanto esta é dirigida para a origem dos recursos, os depósitos, a CPI dos Correios está mostrando que não é apenas aí o problema. É preciso ver também a questão pela ótica dos saques, que a CPI está mostrando que foram de somas suculentas, principalmente no Rural. Desde 2003 que o BC e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), pela circular 3.098, recebem dos bancos informações "on line" sobre movimentação de contas de valor igual ou superior a R$ 100 mil; e as de valor inferior a este, que apresentem indícios de ocultação ou dissimulação da natureza de origem. No momento em que o depósito é feito no caixa do banco, este faz o "input" dos dados, que vão direto para o sistema de informações do BC, disponibilizado ao Coaf. "O BC sequer olha esses dados. Ao Coaf cabe analisá-los e, caso suspeite de algo, fazer uma comunicação ao Ministério Público", comentou uma alta fonte do governo. O próprio Meirelles deu essa mesma explicação, em entrevista a Alex Ribeiro, do Valor. O Coaf informa que fez todas as comunicações relativas a movimentações financeiras atípicas de 2003 e 2004 ao Ministério Público e à Polícia Federal, através de um documento chamado "relatório de inteligência". Se lá estavam os depósitos e saques de somas vultosas no Banco Rural, o Conselho não informa. Os dados são genéricos. Como só agora as informações explodiram, através da CPI, no mínimo alguém dormiu no ponto. Aperfeiçoar a legislação para colocar lupa também nos saques bancários não é nada trivial, avalia uma autoridade do BC. A política da instituição imposta aos bancos de "conheça o seu cliente", inspirada na legislação americana, é totalmente voltada para a origem do dinheiro, ou seja, para a movimentação dos depósitos. Os escândalos que estão pautando a CPI dos Correios se relacionam também ao destino dos recursos. O BC vai coletar e colocar à disposição da CPI a legislação que os demais países aplicam, embora já se saiba, de antemão, que ela é escassa nessa área. Uma idéia aventada no BC seria tornar obrigatório que somente o cliente faça saques no caixa do seu banco, o que, convenhamos, seria um transtorno com consequências econômicas desconhecidas.