Título: Posseidon e as exportações
Autor: Antonio Delfim
Fonte: Valor Econômico, 02/08/2005, Brasil, p. A2

O ano de 2004 foi relativamente brilhante. Tivemos um crescimento do PIB de 4,9%, o maior desde 1995, e uma taxa de inflação (7,6%) dentro dos limites das flutuações amostrais havidas no período 1995/2004. As finanças públicas caminharam bem, apesar de termos feito um montante de despesas com juros (R$ 125 bilhões) da ordem de 7% do PIB, dos quais R$ 80 bilhões foram cobertos pelo "superávit primário". O resultado mais significativo foi o do setor externo, onde nossas exportações anuais foram de US$ 96,5 bilhões, registrando um aumento de 32% sobre o ano anterior. No final de 2004, tudo indicava que continuaríamos no mesmo caminho. A despeito de algumas sinalizações contraditórias, as previsões (que se confirmam a cada dia) eram que o crescimento dos países desenvolvidos em 2005 seria apenas ligeiramente menor, mas seria compensado em boa parte pela vigorosa expansão dos emergentes. Com relação à taxa de inflação mundial, a impressão era a de uma melhoria generalizada (atingindo, talvez, 2,3% a 2,4%).

Apoiado na idéia sacrossanta que o "produto potencial" do Brasil não é maior do que 3,5%, e que 5,1% é a meta de inflação estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional, para cumpri-la pacientemente o Copom aumentou durante nove meses a taxa Selic em 375 pontos. Isso foi suficiente para anestesiar o "espírito animal" dos empresários e reconduzir "cientificamente" o crescimento da economia brasileira à taxa de letargia calculada pelos alquimistas com seus "filtros" e tarometristas com suas funções de produção. Um ponto interessante da "nova retórica" é que vimos ganhando terreno no combate à inflação nos últimos anos, como revelam os números: taxa de inflação de 2002, 12,5%; taxa de 2003, 9,3%; e em 2004, 7,6%. Nada mais natural, portanto, que uma meta de 5,1%. O que se esquece é que 2003 foi um "outlier" produzido pela agitação política que acompanhou o processo eleitoral que elegeu Lula. A média das taxas de inflação de 1999 a 2001 (8,9%, 6,0%, 7,7%) não diferem, estatisticamente, das de 2003 e 2004. Não houve, portanto, qualquer progresso no combate à inflação! Certamente o aumento da taxa de juro, reduzindo a demanda privada, deve ter exercido uma certa influência sobre a retração das taxas de inflação nos últimos meses (e também sobre o crescimento do produto potencial). Além dele, cumpriram o mesmo papel uma antecipação da safra de álcool, uma baixa acentuada de hortifrutigranjeiros e a ausência de aumento de preços monitorados, particularmente os combustíveis.

Dificultar importações dá força à alta de preços

O efeito fundamental sobre a taxa de inflação, entretanto, foi produzido pela imensa valorização cambial causada pela taxa de juro real de 13%. Aliás, a permanência da Selic em 19,75% quando a taxa de inflação acumulada prevista pelo mercado para os próximos 12 meses (Focus, 15/7) caiu para 4,97%, elevou a taxa de juro real "ex ante" para 14%! Tudo bem considerado, não existe nenhuma garantia que a atual taxa cambial não se desvalorize, tão logo os juros reais caiam ou se reduzam seletivamente as tarifas alfandegárias ou se desestimule a entrada de capitais voláteis. É certo que o estupendo sucesso das exportações deveria mesmo valorizar o real, mas muito mais discretamente do que ocorreu. E não há nenhuma certeza que esse sucesso, produto do aumento dos investimentos no setor exportador, vá continuar, se persistir a enorme valorização cambial. A tabela abaixo mostra como a expansão da economia mundial e o formidável aumento das transações internacionais, a partir de 2002, juntamente com a liberalização cambial de 1999, "fabricaram", de certa forma, nosso sucesso. Grosseiramente, 2/3 do nosso "formidável" avanço foi produzido pelo sopro de Posseidon (o vento que favorece o comércio mundial) e 1/3 pelo nosso próprio esforço exportador, principalmente o acidente do "overshooting" cambial. As recentes propostas das autoridades para resolver a sobrevalorização do real são verdadeiras aberrações. Dificultar as importações distorce o sistema de preços, reduz a quantidade disponível e dá força aos aumentos de preços. A saída é pela outra porta: cortar a demanda do governo, dificultar a entrada de capital volátil, baixar as tarifas alfandegárias e baixar a taxa de juro para acelerar o crescimento. As três últimas corrigem a sobrevalorização com efeitos colaterais adequados: desvalorizam o real, ampliam os investimentos (em todos os setores pelo aumento da importação e pelo menor juro real), aumentam a competição e combatem estruturalmente a inflação. Em junho de 2005, a exportação anualizada dos últimos 12 meses é da ordem de US$ 107 bilhões e a importação de US$ 68 bilhões, com superávit de US$ 39 bilhões. Não precisamos mais do que US$ 10 bilhões ou US$ 15 bilhões. Imaginem o aumento de produtividade que temos potencialmente congelado na importação de mais US$ 25 bilhões. E ficamos perdidos imaginando voltar à mágica do controle das importações...