Título: A Arábia Saudita depois do rei Fahd
Autor: Mai Yamani
Fonte: Valor Econômico, 02/08/2005, Opinião, p. A10

A vigília de morte real de uma década da Arábia Saudita terminou. O rei Fahd, o monarca que por mais tempo governou na história da Arábia Saudita (24 anos), está morto. Por seis semanas, o rei permaneceu no hospital combatendo a morte, coisa que tem feito, na verdade, desde que sofreu um derrame, há 10 anos. A identidade do novo rei é clara, porém o que não está claro quem deterá o poder real. Assim como ocorreu quando o marechal Tito estava morrendo em uma Iugoslávia dividida, as relações reais do rei (que também são seus subalternos políticos) temem que a morte do dirigente desencadeie o caos. Este temor acontece num momento em que o Oriente Médio mais amplo se agita com discussões sobre mudança democrática. Do Egito ao Líbano até o Irã, as paixões políticas estão se avolumando, aliadas a um otimismo renovado. Manifestações de rua, eleições e discussões políticas em bares e na internet proliferam como nunca. Mesmo os países conservadores da Península Arábica estão envolvidos em discussões intensas sobre cargos de ministro para mulheres, representação xiita, participação islâmica no processo político e até o futuro das suas monarquias no poder. Nessas circunstâncias dinâmicas, a Arábia Saudita sobressai. Realmente, a Arábia Saudita parece estar presa em um estado de entusiasmo suspenso, com seu organismo político doentio e instável. O país está preso entre duas escolhas: reforma progressista ou paralisia continuada e declínio. As divisões no reino estão mais pronunciadas que nunca, e a morte do rei poderá aprofundá-las ainda mais. Dois campos rivais - os chamados reformistas e os linhas-duras - estão se formando no Al Saud, a mais extensa família governante, com 22 mil príncipes e princesas. Os reformistas detêm menos autoridade, porém representam a face aceitável da ditadura saudita, internacionalmente. Seu novo líder, o rei Abdullah, parece ter legitimidade em função da sua antiguidade na família. Os reformistas falam sobre eleições municipais parciais, diálogo nacional e direitos das mulheres, que, insinuam, um dia poderão até ter permissão para dirigir carros! Mesmo essas tentativas limitadas são obstruídas pelo campo Wahhabi linha-dura, que controla as forças de segurança, o sistema judiciário e as reais alavancas do poder interno. De fato, o príncipe Naif, o ministro do Interior e líder dos linha-dura, silenciou ou prendeu centenas de importantes reformistas sauditas.

A família governante está dividida entre os reformistas, que admitem eleições parciais, e os linha-dura, que controlam as forças de segurança

Um motivo para a fragilidade da facção de Abdullah é que ela detém apoio insuficiente dentro da família, pois o centro do poder dos Al Saud está com os Al Fahads - os seis irmãos germanos do falecido rei Fahad - e, de forma mais importante, com o príncipe Sultan, o ministro da Defesa, e com o príncipe Naif. Aparentemente, a sucessão seguiu conforme esperado, com o príncipe herdeiro se tornando rei, agora que o rei morreu. Apesar disso, Abdullah poderá ser incapaz de moldar o futuro, pois ele parece fadado a ser derrotado em qualquer confronto direto com as forças de Naif. A base de poder de Abdullah está na Guarda Nacional e na sua pretensão de receber o apoio das forças modernizadoras da Arábia Saudita. Ambas são insuficientes para conter Naif. Um teste inicial importante do reinado de Abdullah será determinar se ele conseguirá libertar as centenas de reformistas políticos atualmente na prisão, especialmente três respeitados estudiosos que ele havia incentivado a apresentarem propostas de reforma, para logo em seguida serem encarcerados por Naif. Agora que o rei Fahad se foi, alguns antigos acertos de contas entre seus numerosos irmãos e meios-irmãos, sem mencionar os milhares de príncipes na geração seguinte, precisarão ser resolvidos. Mas não podemos depositar esperanças na geração seguinte, que não é necessariamente jovem ou progressista. Com efeito, a terceira e quarta gerações do clã de Al Saud estão divididas não só na filiação política e religiosa, mas também nas idades, que vão de 20 anos a 90 anos. Todos aguardam uma oportunidade de governar. Portanto, o povo saudita está diante da seguinte questão decisiva: poderá surgir um dirigente autoritário que reuna o país na tradição progressista do falecido rei Faisal? A triste probabilidade é que, considerando o poder dos obstrucionistas sob Naif, é pouco provável que surja um rei decidido e vigoroso. O rumo que o país tomará no longo prazo poderá ser melhor avaliado pela pessoa que Abdullah escolher para indicar como sucessor ao príncipe Sultan, o principal aliado de Naif, que já havia sido nomeado herdeiro de Abdullah. Se Abdullah (com 83 anos) puder saltar uma geração e indicar uma figura mais jovem e mais dinâmica, poderá haver esperança. Mas Naif (de 77 anos), seus irmãos germanos - incluindo Sultan (de 82 anos) - e seus partidários dentro da ordem vigente Wahhabi parecem estar arraigados demais para permitir que isso aconteça. A exemplo das sucessões geriátricas que precederam o colapso da União Soviética, a sucessão na Arábia Saudita parece ser apenas um passo na inexorável marcha rumo à decadência política. A Rússia encontrou um jovem reformista em Mikhail Gorbachev tarde demais. Pode já ser tarde demais também para a Arábia Saudita.