Título: Por uma linha oficial de miséria
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2004, Opinião, p. A-12

A mensuração da miséria, enquanto insuficiência de renda, requer a fixação de uma linha abaixo da qual os indivíduos são considerados miseráveis. Nas linhas de indigência se calculam valores monetários que permitam suprir necessidades calóricas básicas. No caso da pobreza considera-se, além de despesas alimentares, as de habitação, vestuário, transporte etc. O cálculo de linhas de pobreza encerra todas as escolhas metodológicas da linha de indigência, além de embutir outras de significado incerto, do tipo: Você tem fome de quê? No Centro de Políticas Sociais da FGV optamos por uma linha de miséria baseada em necessidades alimentares mínimas, fixadas em 2288 calorias/dia e traduzidos em valores monetários usando os hábitos de consumo das pessoas situadas entre os 20% e os 50% mais pobres da população. O resultado é uma linha de R$ 108 mensais por pessoa, avaliada a preços da Grande São Paulo de outubro de 2003, e ajustadas por diferenças regionais de custo de vida. O cálculo de linhas de miséria, como toda a literatura de bem estar social, depende de julgamento de valor, implícito na escolha metodológica adotada. Por exemplo, não existe nada de possivelmente errado na escolha de Lula de que cada brasileiro deveria ter ao seu alcance pelo menos três refeições diárias. Isto é um valor ético e ponto. Na verdade, cada brasileiro tem uma linha de miséria na cabeça. A Pesquisa de Padrões de Vida, também do IBGE, perguntou o valor da linha de miséria subjetiva de cada um. Uma pergunta de particular interesse aqui é: considerando a sua família, qual seria a menor renda mensal necessária para cobrir gastos de alimentação? A média das respostas é R$ 153/mês por membro familiar. Nessa perspectiva R$ 108/mês por pessoa estaria mais para uma linha light. Já a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE revela que 46,6% da população consideram que a quantidade de alimentos consumidas pelas suas famílias nem sempre é suficiente para satisfazer necessidades básicas. Nas áreas rurais, esse número é de 56,9%; no Nordeste, 60,8%. É fundamental o Brasil adotar, de uma vez por todas, uma linha oficial de miséria. Os Estados Unidos fizeram isso em meados dos anos 60. A Índia e a Irlanda também já adotaram a medida e têm obtido belíssimos avanços sociais. A adoção de uma linha oficial é a primeira meta a ser atingida, se queremos adotar metas de redução de miséria ao longo do tempo. O essencial é adotar uma linha, independentemente do valor arbitrado. Para mim, a linha oficial mais interessante é aquela acima de idiossincrasias locais. Pode ser a linha de US$ 1 por pessoa dia convertido em reais pela paridade de poder de compra (PPP) das Metas do Milênio de reduzir a miséria à metade até 2015, já compromissadas pelo país. Ou podem ser linhas calculadas a partir de cestas de consumo internacionais, não importa. O ponto fundamental do ponto de vista nacional é que as linhas não pertençam a um governo específico. Linhas internacionais facilitam a coordenação de ações entre diferentes níveis de governo de partidos diferentes e serão mais robustas quando das mudanças de governo. O país vem discutindo há muitos anos a adoção de linhas oficiais de miséria, debatemos à exaustão quantos são miseráveis, tirando o foco do mais importante, o desenho de política social mais adequado.

Não basta contar miseráveis, mas os mais miseráveis deveriam contar mais na formulação das metas sociais

Além do arbítrio da linha de miséria - a fronteira imaginária entre o lado belga e o indiano da nossa Belíndia - temos outros elementos subjetivos - e arbitrários - envolvidos no processo de agregação dos miseráveis calculados a partir de uma dada linha. A maior parte das análises e as próprias metas do milênio usam a proporção de miseráveis, isto é, conta-se a fração da população abaixo de uma linha de miséria arbitrada. Já o indicador conhecido como P2 eleva ao quadrado a insuficiência de renda dos pobres, priorizando as ações públicas aos mais desprovidos. Se a meta fixada fosse a redução do P0, existiriam incentivos espúrios para a adoção de políticas focadas no segmento logo abaixo da linha de pobreza e não nos mais miseráveis. Recursos migrariam para as pessoas pularem localmente a linha de miséria traçada. No nosso exemplo, daria em primeiro lugar R$ 1 a quem tem renda de R$ 107 e não a quem tem zero. Além da inversão de prioridades, o foco das políticas redistributivas seria bastante sensível à escolha sempre arbitrária da linha de miséria. No caso do P2, independentemente da linha arbitrada, pode ser até renda do Bill Gates, a prioridade é voltada aos de menor renda. A adoção do P2 corresponde à instituição de uma espécie de ascensor social que partiria da renda zero. A meta de redução do P2, ao conferir prioridade máxima às ações voltadas para os mais carentes, é mais eficiente em termos fiscais. Outra questão associada é que as metas sociais deveriam de alguma forma levar em conta a trajetória ao longo do tempo do indicador escolhido. Por exemplo, se a meta for reduzir à metade a proporção de miseráveis até uma determinada data, digamos primeiro de janeiro de 2015, a maneira mais barata de atingi-la seria completar a renda dos 50% menos miseráveis até a linha na véspera, ou seja, 31 de dezembro de 2014. Em suma, o P0 conta miseráveis e o P2 nos dá o norte das ações, diz por onde começar. As prioridades da política social estão mal definidas com a contagem de pobres (P0), sua implicação é "primeiro os menos pobres". Apesar da complexidade associada à maior aversão à pobreza do P2, o seu corolário imediato "primeiro os mais pobres" me parece mais adequado. Além disso, a ordem da fila de programas sociais fornecida pelo indicador é à prova das linhas arbitradas É necessário ainda se levar em conta a trajetória dos indicadores sociais através de um cálculo de valor presente, ou algo do gênero. Pode parecer excesso de cuidado, mas metas sociais são para ser levadas a sério, assim como as metas inflacionárias. O ataque à ignorância exige inteligência. Os pobres merecem algo mais do que políticas pobres. Não basta contar miseráveis, mas os mais miseráveis deveriam contar mais na formulação das metas sociais.