Título: Pimentel quer lançar títulos municipais
Autor: Maria Lúcia Delgado e Ivana Moreira
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2004, Especial, p. A-14

A eleição com quase 70% dos votos válidos no primeiro turno dá ao prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, respaldo político para trazer propostas inovadoras à direção nacional do PT e à equipe econômica. Em entrevista exclusiva ao Valor, ele anuncia que só aguarda o fim do segundo turno para discutir com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a necessidade de mudança na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para permitir que prefeituras inseridas num critério de classificação internacional de risco possam emitir títulos no mercado. Ele antecipa que a Prefeitura de Belo Horizonte fará licitação para contratar uma agência internacional de risco. Economista foi secretário de Fazenda da administração Patrus Ananias (1993-96) e da primeira gestão de Célio de Castro (1997-2000). Na segunda, elegeu-se como vice, mas já assumiu no final do primeiro ano de governo, depois de um acidente vascular cerebral do titular. É uma das únicas lideranças petistas que participou de todas as gestões da aliança PT-PSB na capital. Muitas vezes condenado pelos próprios petistas pela "ortodoxia fiscal", Pimentel diz que é contra a renovação do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI): "Essa gestão responsável e séria tem que apontar um caminho para a gente tirar proveito para o crescimento econômico. Senão, vamos fazer uma gestão responsável sempre só para agradar aos nossos credores, e isso é pouco". Aos 53 anos, casado com a historiadora Thaís e pai de dois filhos, Fernando Pimentel pode sair desta disputa como a principal expressão eleitoral do PT nas capitais. A seguir, a entrevista: Valor: O que explica a vitória expressiva do PT e primeiro turno aqui? Fernando Pimentel: Fomos uma administração democrática-popular o tempo todo, com vários partidos. É uma seqüência de governos nitidamente do campo popular, de esquerda, e que hoje estão muito identificados com a estrela e o ideário do PT. A cidade concretizou um modelo democrático, participativo e eficiente de resolver problemas. Não tenho nenhuma pretensão de dizer que o PT é o dono deste modelo, ou os partidos que estão hoje conosco. A cidade é dona do modelo. Valor: Em que medida a participação do presidente Lula afetou a campanha em BH e nacionalmente? Pimentel: Na campanha propriamente dita nós não usamos a figura do presidente Lula. Não usamos em nenhum momento o Lula, nem ministros, nem o vice-presidente José Alencar. E tínhamos tudo gravado. Não usamos por uma estratégia. Tínhamos muito claro que a eleição seria voltada para a discussão de temas locais. A questão nacional entraria só como uma espécie de reforço, complemento. Havia uma crítica muito forte por esse tipo de participação. Então, decidi poupar o presidente. Eu sempre achei que o eleitor não vota em ninguém por estimulação de terceiros. Vota na pessoa se sentir confiança nela, segurança. Tem que conhecer as propostas, os caminhos, o jeito de ser, a postura. Valor: Poupá-lo de quê? Pimentel: De constrangimento, de mais uma crítica. Era desnecessário. Para o eleitor de Belo Horizonte, que é muito politizado e bem informado, era óbvio quem era o candidato do presidente Lula. Não precisava forçar a mão. Para que criar mais um problema para o presidente? Valor: Por conta do envolvimento direto do presidente na campanha em São Paulo, questiona-se muito a dificuldade do PT em separar o público do privado, e de Lula em diferenciar a liturgia do cargo do exercício da militância. Pimentel: Lula age com uma transparência e uma lealdade às suas idéias e às suas crenças que não é comum. Vejo duas coisas. Primeiro, há um evidente farisaísmo de alguns setores políticos e partidos em relação a essa questão. O presidente não pode receber prefeitos reeleitos de capitais no horário de trabalho? O que é isso? Em que país estamos? Aí dizem: ah, mas a conversa lá foi partidária... E daí? Supondo que tenha sido, o presidente não pode receber prefeitos e ter com eles qualquer conversa? Isso não era cobrado, e nunca foi cobrado desta forma, nos oito anos do nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Valor: Não é exatamente esse patrulhamento que o PT fazia e hoje condena?

Faz-se a caminhada de uma geração. É lícito que o partido que está no governo queira ser o líder. Mas pode não ser.

Pimentel: Eu nunca vi o PT patrulhar o FHC por receber este ou aquele prefeito, e ter esta ou aquela conversa com quem quer que fosse. Podem até dizer que o PT sempre foi muito rigoroso - e continua sendo - com as questões éticas. Sim. Mas isso não é uma questão ética. O presidente Lula não infringiu a lei em nenhum destes episódios. Está lá agora recorrendo de decisão da Justiça em São Paulo porque numa inauguração falou o nome da candidata. Tudo bem, pode ter sido um escorregão. Por outro lado, acho que nós do PT somos de fato mais cobrados que os outros partidos. E é bom que seja assim. Não me incomoda em nada. É bom que tenha um partido diferente dos outros. De fato a turma do PT é diferente mesmo. Não tem complacência no negócio ético. Valor: Então, se não tem complacência, não deveria ter também cuidados redobrados? Pimentel: É nesse ponto que quero chegar. Não infringir a lei é pouco para nós. Para os outros, talvez seja até muito, porque a maioria infringe. Para o PT é pouco. O que choca o senso comum em relação à nossa postura e imagem, não devemos fazer. Foi por isso que eu não quis colocar o Lula no programa eleitoral. A gente deve pagar o preço da imagem do nosso partido. O PT é mais cobrado que outros. Alguns companheiros se revoltam com isso, mas é bom que seja assim. Eu quero que continue sempre sendo uma marca registrada do PT essa absoluta intolerância em relação às questões éticas. Valor: O sr. afirmou que "a turma do PT é diferente". Como explicar, por exemplo, alianças com Newton Cardoso e outras figuras que o partido até então não considerava éticas? Pimentel: Eu entendo isso com muita tranqüilidade. Nós somos intransigentes com relação ao nosso padrão e comportamento éticos, mas estamos na política. Fazer política significa fazer alianças, buscar apoios e não recusar votos. O voto não contamina ninguém. O voto é o único instrumento possível da transformação social. Num quadro democrático, você tem que ganhar a eleição e precisa de votos. Vamos pegar um caso fora de Minas aparentemente chocante: a Marta aceitar o apoio do Maluf. Qual é o problema? O Maluf não vai ser prefeito, não vai nomear secretários. Se ele diz que prefere a Marta ao Serra, ótimo. Que prefira. É do jogo democrático. É assim. A Marta deveria dizer não? Por que faria isso? Se depois da eleição vai ter aliança é outra discussão. Valor: O sr. defende um diálogo mais amplo e direto entre PT e PSDB. Quais as dificuldades para que isso ocorra? Pimentel: Às vezes falo e sou mal interpretado. Temos no Brasil dois partidos sólidos, enraizados, muito tipificados, que são o PT e o PSDB. Sem nenhum demérito para as demais forças partidárias, que também são importantes, esses dois partidos, pela sua conformação, pelo seu desenho, pela forma e pela história, são os partidos que têm projeto para esse país e condições de implementá-los. PT e PSDB são partidos sérios, responsáveis. Podem estar de lados opostos de vez em quando, mas um não duvida do outro no quesito compromisso com a nação brasileira, com a construção de um país melhor. Se é assim, por que é que não podemos imaginar um cenário em que esses dois partidos conversem maduramente sobre as grandes questões nacionais e caminhem juntos nestas questões, sem abrir mão da identidade partidária, das divergências pontuais, das disputas locais? Por exemplo: não precisamos da reforma política no Brasil? Não é possível que as lideranças do PT e do PSDB sentem e construam um caminho para essa reforma? Não precisamos avançar na questão tributária? Por que os dois partidos não podem construir juntos uma saída? De dois em dois anos há eleição, e PT e PSDB vão disputar. É normal, mas as divergências regionais em São Paulo colocam em risco essa idéia de que os dois grandes partidos com formação sólida e compromisso com o país podem conversar e caminhar juntos. Valor: O projeto de poder do PT não inviabilizaria esse diálogo mais profundo e sistemático? Pimentel: E o do PSDB não inviabilizou também? O ex-ministro Sérgio Motta dizia que precisavam ficar 20 anos no poder. Só existe um projeto para o Brasil hoje. Se pensarmos no quadro internacional, na complicação do mundo moderno, na brutal e mal direcionada hegemonia americana, no belicismo espantoso, nas dificuldades de inserção soberana de uma nação como o Brasil, nas nossas dificuldades internas e graves de exclusão social, enfim, se pensarmos neste conjunto de problemas, não podemos imaginar que é como ir a um supermercado, em que há várias marcas de produtos para escolher. Se conseguirmos conformar um projeto para o Brasil ele será um só. Pode haver alternância de poder. Isso é do espírito da democracia. O que não pode é interromper a construção do modelo. Nós não temos, no Brasil, um manancial tão grande de quadros políticos para estar trocando a cada quatro anos, e botando fora o que foi adquirido de experiência. O limite de manobra do governo federal hoje, e dos governos em geral, é muito reduzido. Com a dívida pública que temos, sempre teremos que ter resultado primário. Valor: Essa sua lógica explica a continuidade da política econômica no governo Lula? Pimentel: A política econômica, até este momento, foi correta e possibilitou que o Brasil saísse de um iminente colapso financeiro. Estamos chegando a uma situação de não renovar mais o acordo com o FMI. Como economista eu gostaria que o governo brasileiro não renovasse o acordo com o FMI, e mantivesse a mesma austeridade fiscal, os mesmos compromissos. Nós estamos construindo um projeto para o Brasil. A estabilidade do Plano Real foi importante, mas não é suficiente para um país do tamanho do Brasil. Agora, 10 anos após o Real, é vital retomar o crescimento econômico. Tem que haver um compromisso nacional com esse crescimento. Valor: Para crescer, o país não deve renovar o acordo com o FMI? Pimentel: Nós criamos as condições para não renovar. Esse é que é o ponto. Saímos da situação de faca no pescoço. Não renovar é só um corolário, só um exemplo máximo da necessidade que temos de flexibilidade para, a partir daí, começar a retomar o investimento público e melhorar a estrutura do país. As exportações retomaram um ritmo muito acelerado, e logo teremos um gargalo de logística. Isso não será superado sem investimento público. Por outro lado, precisa de superávit primário. Como conciliar essas duas coisas? Esses são os entraves que o FMI não nos ajuda a resolver. Valor: Em que patamar deve ser mantido o superávit primário?

PT e PSDB podem estar de lados opostos mas não duvidam um do outro no quesito compromisso com a nação "

Pimentel: Como gestor público, acho que precisamos manter um nível de superávit primário compatível com o tamanho da dívida pública. Não podemos ter um superávit tão alto que inviabilize totalmente o investimento. Precisamos recuperar a malha viária deste país. Não tem como ter crescimento econômico se nós não recuperarmos. Tem mecanismos para isso, e não é só a PPP. Acho que precisava um pouco de ousadia na área econômica e eu espero que a gente consiga isso nos próximos anos. Nós podemos perfeitamente colocar os municípios na classificação de risco internacional. Os que tiverem condições de lançar títulos no mercado, por que não autorizá-los a fazer isso? Isso não vai pegar mais que 50 grandes municípios. Valor: O sr. já conversou sobre isso com o ministro Antonio Palocci e a equipe econômica? Pimentel: Acredito que dá para avançar. Tenho conversado mais com os prefeitos que com a equipe econômica. Deixe acabar o segundo turno e vamos conversar maduramente. Os municípios precisam de dinheiro para seus investimentos. A classificação de risco hoje é muito rigorosa. Valor: Mas para emitir os títulos e aumentar o limite de endividamento teria que modificar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Pimentel: Sim, mas eu acho que se nós temos compromisso com o crescimento econômico, vamos ter que fazer as correções necessárias. O ministro Palocci está fazendo uma gestão responsável e séria. Agora, chegou o momento, de dizer: bem, essa gestão responsável e séria tem que apontar um caminho para a gente tirar proveito para o crescimento econômico. Senão vamos fazer uma gestão responsável sempre só para agradar aos nossos credores. Ai é pouco. Valor: Belo Horizonte teria condições de ir para esse mercado de forma responsável? Pimentel: Acho que sim. A prefeitura de BH vai contratar uma agência de avaliação de risco internacional. Vamos ter o risco-Belo Horizonte. Digamos que a gente tenha o risco igual ao do Brasil. A União está indo ao mercado de crédito com o mesmo risco que eu. Eu estou decidido a medir o risco do município, porque isso é útil para nós. Se chegar amanhã um investidor propondo um grande empreendimento conosco, eu mostro o risco. A nossa gestão econômica responsável e séria deve agregar um tanto de criatividade e ousadia, porque senão não sairemos do impasse. Valor: Já se fala abertamente no PT sobre a reeleição de Lula. Há um acordo tácito entre o PT e o governador Aécio Neves, para que ele dispute a reeleição no Estado e facilite o projeto nacional? Pimentel: Isso tudo é especulação. Não tem nada disso. Nunca conversei sobre esse assunto com o Aécio Neves, nem com o presidente Lula, muito menos com o meu partido. Meu projeto é o projeto do PT e do presidente Lula. Como prefeito, vou ajudar o governador a fazer um bom governo. A realidade de Minas permite essa convivência. Eu não vou atrapalhar o governador Aécio Neves. Como tenho certeza que o governador não fará isso comigo. Valor: As supostas derrotas do PT em São Paulo e em Porto Alegre seriam tão emblemáticas assim? Pimentel: A gente tem que esperar os resultados. Certamente teremos que fazer um balanço muito sereno e maduro sobre o resultado das eleições municipais e os dois anos do governo. Estou pensando seriamente em fazer e propor para o partido o seguinte: Belo Horizonte poderia sediar, no ano que vem, um fórum para fazer um balanço dos 20 anos da redemocratização no Brasil. Ai, dentro deste balanço, pegaremos os 10 anos do Plano Real, os dois anos do governo Lula, essa eleição. Sou da geração política de 68, e muitos estão no governo. Nossa geração conseguiu colocar o Brasil outra vez na rota da democracia. A eleição de Lula talvez seja um momento luminoso para mostrar que a democracia no Brasil foi reconquistada definitivamente. A outra metade da nossa meta, e nesta ainda estamos penando, é reduzir a desigualdade social. Na questão social estamos devendo muito. Valor: Seu nome surge como uma nova liderança no PT, e sua vitória reforça isso. O sr. leva propostas novas para a direção nacional do PT? Pimentel: Já há claramente no PT esse sentimento de que há uma coisa nova, que não sou eu, mas também o João Paulo (Recife), o Marcelo Déda (Aracaju), que têm uma leitura diferenciada da realidade e uma postura diferente da postura mais hegemônica no partido. Acho que isso hoje é notório. Fico satisfeito que seja assim. O partido tem que ser plural. Não tenho nada contra meus companheiros de São Paulo. Eu tenho a leitura de que construímos um projeto para o Brasil que não está acabado. E o PT é dono dele? Não, de jeito nenhum. Há parte do PSDB que está conosco nesta construção. Eu tenho essa visão da caminhada. Reconquistamos a democracia. Quem? O PT? Não, meu companheiro. O PT também, mas o PSDB, o PMDB, tem gente do PFL também . É a caminhada de uma geração. Esse projeto não é partidário, e o partido que está no governo precisa ter essa leitura. É lícito que ele queira ser o líder. Mas, pode não ser. Pode haver alternância. O importante é que a gente não se desvie do rumo.