Título: O difícil comércio com os EUA
Autor: Sérgio Leo
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2005, Brasil, p. A2

Sem pagamento de mensalão, mas com um esforço que demandou telefonemas do presidente George Bush e a ida do vice, Dick Cheney, ao Congresso, durante a votação, a política comercial da Casa Branca passou por um difícil teste na semana passada. Sob críticas pelas sérias concessões que foi obrigado a fazer, o governo Bush conseguiu aprovar o acordo de livre-comércio com a República Dominicana e países da América Central, algumas das economias mais pobres do continente. A Casa Branca republicana teve o apoio de 15 democratas, mas oposição no próprio partido, e ganhou por apenas dois votos entre os deputados. Vitória difícil, com sinais importantes para o Brasil. Uma das maiores pedras na rota do acordo, conhecido como Cafta, foi o lobby dos produtores de açúcar dos EUA, que conseguiram promessas de apoio e proteção por parte do governo, para baixarem a resistência contra a entrada, livre de impostos, de uma parcela do açúcar e do etanol produzidos nos países do Cafta. O que provocou o desespero dos usineiros americanos foi o aumento de 100% na cota de importação de açúcar centro-americano, percentual expressivo, mas pífio em termos reais. Na prática, esses países aumentarão as vendas em pouco menos de 140 mil toneladas, 1,1% do consumo americano, 1,2% da produção do país. Se esse aumento medíocre foi capaz de mobilizar um lobby poderoso, que bradava contra a ameaça aos empregos americanos no campo, é de se imaginar o que representaria uma tentativa brasileira de abrir espaço para o açúcar brasileiro naquele mercado, para onde exporta 153 mil toneladas anualmente, das 13 milhões que vende ao mundo. A resistência nos EUA em abrir mercado às esquálidas economias centro-americanas, porém, mostra, o alto grau de protecionismo em setores muito localizados naquela economia. Por infelicidade, alguns em que o Brasil tem maior vantagem competitiva.

Governo deve estudar bem o Cafta

Chama a atenção de especialistas do governo brasileiro o fato de que, na prática, os ganhos para os centro-americanos limitam-se aos setores têxtil e de calçados, e à consolidação de vantagens já conferidas em acordos dos EUA com aqueles países. Os EUA serão os maiores ganhadores. Grãos dos EUA que hoje enfrentam tarifas de 10,6% para entrar nos países do Cafta serão importados sem tarifas. Também cairão para zero as tarifas sobre verduras e frutas, hoje em 16,7%; de veículos automotores e partes (antes em 11,1%); de alimentos processados (12,8%,); e produtos de madeira (10%), entre outros. Os centro-americanos já estavam livres das tarifas para vender esses produtos aos EUA, mas protegiam seus mercados dos competidores americanos. Pode-se argumentar que essa derrubada de barreiras unilateral será benéfica por liberar as forças produtivas da América Central para a produção de bens onde tenham competitividade real. O Banco Mundial estima em 300 mil os empregos criados nos setores de vestuário, têxtil e calçados naqueles países, com o acordo. O Cafta, porém, não se limitou ao comércio de mercadorias. Estendeu aos centro-americanos regras severas de proteção de patentes, marcas e direitos de autor, com normas que dificultam a produção de genéricos e inviabilizam licenciamento compulsório de patentes, como ameaça o Brasil contra medicamentos anti-Aids. Também abriu o mercado de serviços daqueles países aos fornecedores americanos e impôs rígidas restrições aos governos, que poderão ter iniciativas de incentivo à produção contestadas em tribunais internacionais, por investidores americanos. O Cafta inclui quase todas as propostas dos EUA contra as quais o Brasil se opõe em negociações como a da Alca. Tem regras ambientais e trabalhistas que, se descumpridas, podem provocar retaliações comerciais por parte dos EUA; proíbe regras especiais para comércio de produtos digitalizados e impostos sobre compras na Internet; traz normas ultra-liberais em matéria de compras de governo. Sob o Cafta, os centro-americanos não poderão exigir, nas compras do setor público, que o fornecedor transfira tecnologia, como o Brasil quis fazer na compra dos caças da FAB. É esse o modelo que os EUA, pouco a pouco, consolidam com seus parceiros comerciais. Já negociam algo parecido com os países andinos. Faz bem o Brasil em não ficar parado. Em setembro, recomeçam as discussões para um acordo bilateral Mercosul-Canadá. É recomendável estudar atentamente o Cafta, para os que têm esperança de fazer, no Brasil, um acordo com os EUA.