Título: A crise do PT e seus impactos políticos
Autor: Fernando Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2005, Brasil, p. A6

A revelação do esquema do "valerioduto" atingiu boa parte da classe política brasileira, mas, com certeza, o maior derrotado em toda esta história é o Partido dos Trabalhadores. Depois de mais de duas décadas de discurso pela ética na política e de luta em prol de valores republicanos, a descoberta quase diária de petistas envolvidos em práticas patrimonialistas, financiamento ilegal de campanhas ou de usos escusos de recursos públicos, só pode levar a uma conclusão: o PT precisa ser refundado. E sua refundação, na verdade, tem o potencial de levar a uma mudança de suas idéias e práticas, com efeitos sobre a esquerda e todo o sistema político. Há o perigo, no entanto, de a palavra refundação se tornar mais uma peça de marketing, ou, pior, uma maneira de proteger e resguardar políticos e militantes petistas que não foram responsáveis diretos pela atual crise de credibilidade do partido. Esta possibilidade existe por três razões. A primeira diz respeito à estratégia de mudar nomes, mais do que práticas. É claro que uma grande parcela do PT não participou dos esquemas montados pela direção partidária, comandada na verdade pela figura de José Dirceu. Não apenas a esquerda petista estava fora desse jogo, mas uma grande parcela de parlamentares e prefeitos com maior vinculação ao chamado Campo Majoritário também ignorava as características e a extensão do projeto montado por uma oligarquia partidária, enfim transformada em camarilha ao chegar ao poder. Só que a mudança de nomes, embora importante, não altera características que favoreceram a produção dos escândalos do "valerioduto". A principal delas é a pouca importância que os integrantes do Partido dos Trabalhadores deram aos controles institucionais internos ao partido. Como resultado desta falta de mecanismos de accountability, a direção partidária teve uma enorme liberdade para montar esquemas grandiosos de financiamento de campanha e outras coisas mais escabrosas, e tudo era feito, como relembrado por Delúbio Soares, com base na confiança. A tarefa de punir e trocar dirigentes é a primeira tarefa da refundação, mas é preciso reconstruir o funcionamento interno do PT, superando a visão do "centralismo democrático". A força eleitoral do presidente Lula e a própria sobrevivência dos parlamentares e políticos petistas, incluindo aí os que estavam fora do esquema montado pela direção partidária, constitui outro aspecto que pode atrapalhar a refundação do PT. É o cálculo de curto prazo dificultando as mudanças mais profundas, voltadas para o longo prazo. Não se trata de propor que os políticos petistas façam um "retiro espiritual" e deixem de concorrer às próximas eleições. Eles têm enorme legitimidade obtida no processo de redemocratização do país e nas últimas eleições. Devem sim participar ativamente do próximo pleito, mas precisam, além de defender os resultados de seu governo, fazer uma forte autocrítica. Enganam-se aqueles que acreditam numa recusa dos eleitores em ouvir pedidos de desculpas dos políticos. Ao contrário, os cidadãos desejam humildade e busca da verdade por parte de seus representantes. Em resumo: refundar o Partido dos Trabalhadores passa uma revisão de algumas suas práticas, de forma explícita e franca para a sociedade - e não existe momento melhor do que a eleição para se fazer isso.

Refundação vai além da troca de nomes

O maior obstáculo para uma efetiva refundação do PT está no diagnóstico parcial da atual crise. Decerto que ela diz respeito a um problema ético, porém, as falhas do partido não podem ser resumidas por uma visão meramente moralista. A origem do fracasso do projeto petista, em minha modesta opinião, reside na produção de valores republicanos e igualitaristas, de acordo com melhor tradição da esquerda, sem uma reflexão sobre os meios que deveriam garantir a busca de tais fins. O Partido dos Trabalhadores, por exemplo, sempre rejeitou a discussão sobre a reforma do Estado, classificando-a de "neoliberal". A resposta estaria no voluntarismo e na aceitação, pura e simples, das demandas sindicais. O resultado efetivo foi a manutenção de padrões administrativos ancorados no patrimonialismo e na falta de eficiência de boa parte da burocracia pública. E sem boa administração pública, não há como cumprir programas de governo. Poderia dar incontáveis outros exemplos que revelam a falta de diagnóstico, quando não de preparo e experiência administrativa, do Partido dos Trabalhadores. Sua refundação, portanto, depende da maior reflexão sobre os meios políticos e administrativos que possam colocar em prática seus ideais de igualdade e republicanismo. Este recado, no fundo, vale para toda a esquerda brasileira, particularmente os grupos que tendem agora a trocar o PT, por conta de seus "desvios éticos", para construir uma nova alternativa, como o P-Sol. Pelo o que já ouvi de tais esquerdistas, digamos, bem intencionados, eles não têm a menor idéia do que fazer para produzir maior desenvolvimento e reduzir as desigualdades sociais do país. Se a atual crise redundar na volta do predomínio do discurso "Fora FMI" como orientação deste espectro político, é triste dizer que o pior efeito da camarilha petista terá sido produzir um retrocesso na visão de mundo da esquerda brasileira. Não se pode esquecer, finalmente, que a refundação do PT não afetará apenas a carreira de seus políticos ou os rumos da esquerda. Como o petismo tornou-se uma referência ética para grande parcela do eleitorado, inclusive para aqueles que não votavam no partido, sua derrocada tende a aumentar o desencanto dos brasileiros em relação à política. É isto que deve levar os outros partidos e os formadores de opinião a continuar (ou mesmo reforçar) a luta pela bandeira do republicanismo, torcendo, ainda, para que os petistas não comprometidos com os escândalos atuais possam recuperar suas credenciais. Para que o final da crise não se transforme no enterro da classe política congressual e da idéia de partido, a oposição sensata deve se preocupar em separar o joio do trigo, para que não percamos homens e trajetórias num país com escassez de lideranças políticas.