Título: Ações suspeitas para abafar denúncias de corrupção
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2005, Opinião, p. A10

Há quase dois meses o país vive uma crise política cujas proporções crescem à medida que os trabalhos da CPI dos Correios avançam em direção a uma teia de interesses escusos ligando os partidos, os maiores e os menos influentes, em falcatruas irrigadas, ao que tudo indica, com dinheiro público. Há quase dois meses, os alicerces das instituições democráticas estão sofrendo abalos a cada novo fato, documento ou denúncia que desnuda o sistema político. Os cidadãos assistem perplexos a cenas já batidas - o uso do caixa 2 nos financiamentos de campanhas eleitorais - e a outras novas e desmoralizantes, como as do envolvimento do PT na ciranda corrosiva de velhas práticas políticas. Todos políticos estão expostos. Os partidos estão sob desconfiança. E os políticos brasileiros parecem não entender a gravidade política dessa situação. Na última semana, ao mesmo tempo em que a abertura das contas das empresas de Marcos Valério expunha as relações do empresário com uma gama de partidos, inclusive da oposição, o ar tem se impregnado de um indefectível cheiro de pizza. Entre os partidos da base aliada, PT, PTB e PP, envolvidos no escândalo, há uma tentativa em curso de um acordo com o denunciador-mor e réu confesso Roberto Jefferson, para livrar todos da cassação. Quando a lama chegou nos pés do PSDB e do PFL, os dois baixaram o tom das acusações. Por fim, o próprio Lula aproveita para alertar a todos para os perigos de que a crise política atinja a economia. Existem, de fato, negociações no Congresso para estancar a enxurrada de denúncias - e isso interessa, hoje, tanto ao governo quanto à oposição. O pretexto seria a estabilidade econômica. Ocorre que a economia não é tão vulnerável a ponto de sucumbir à avalanche de lama que hoje soterra quase todos os partidos representados no Congresso, nem tão forte a ponto de passar incólume por uma crise de credibilidade das instituições que decorra de um "acordão" político, destinado a fingir que nada foi denunciado nos últimos dois meses. Se a classe política não der uma resposta rápida e pronta às denúncias; se não der ao eleitor a garantia de uma limpeza no quadro partidário, a democracia brasileira, não apenas partidos e lideranças, estará em questão. A crise política, até agora, com toda a extensão que adquiriu, não chegou a ameaçar as instituições. Se não ocorrer depuração do quadro partidário e do corpo parlamentar, se não houver uma ação realmente incisiva do governo para separar partido e administração pública, se não for dada uma resposta ao eleitor que, diariamente, vê diante de si um desfilar de ilícitos, aí sim pode-se apostar numa séria instabilidade política. E nos riscos institucionais que isso possa representar. A Brasil sobreviveu às eleições de 2002, quando o establishment financeiro e político apostava num default, na hipótese de uma vitória de Lula. O eleitor aceitou pagar o preço de "um retrocesso", como diz o agora presidente Lula. Não há dúvidas, agora, de que o brasileiro está disposto a pagar pela limpeza do quadro partidário. A democracia depende da confiança dos representados nos seus representantes. Sem apurações profundas, sem punições em regra, é impossível dar essa garantia ao eleitor em outubro de 2006. O relator da CPMI, Osmar Serraglio, garante que a comissão não faz acordos. Que seja assim. Isso não seria apenas uma satisfação para o grande público, mas uma garantia ao brasileiro de que as instituições conseguem responder a crises. Este governo e este Congresso já tiveram na sua biografia uma investigação de mentirinha. A CPI do Banestado, "concluída" em dezembro passado, serviu, inicialmente, como palco eleitoral para parlamentares; depois como instrumento de chantagem contra empresários; e, por último, para uma negociação que deu certificado de inocência a vários envolvidos. A economia pode sofrer alguns sobressaltos, mas no futuro o Brasil vai agradecer se as instituições - Executivo, Legislativo e Judiciário - tiverem a coragem, agora, de limpar o país. A corrupção tem um custo enorme para a economia. As práticas de financiamento de campanha são parte inseparável da corrupção e alimentam uma imensa economia informal, a cada dois anos. Se tiver um preço a ser pago pela faxina, ele o será em nome da mudança de qualidade da democracia brasileira. É preciso iniciar ações que levem à reforma do Estado, alvo principal dos assaltos sistemáticos de quem quer se enriquecer sem esforços. É preciso aprimorar a legislação que coíbe as fraudes bancárias e melhorar o controle sobre movimentações financeiras suspeitas. É preciso, ainda, uma reforma política digna desse nome.