Título: É preciso repensar a Loas
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2005, Opinião, p. A11

O Brasil é um país com muitos pedintes. Estabeleceu-se no dia-a-dia a prática do "me dá um dinheiro aí". Da mesma forma que nós, da classe média, diante das desigualdades de renda, somos levados na rua a atender a parte dos apelos recebidos, distribuindo esmolas, o governo acaba refletindo esse espírito e constituindo programas assistenciais para canalizar recursos para os pobres. Há na política brasileira a idéia de que os gastos do governo se dirigem basicamente àqueles que Élio Gaspari denomina sociologicamente como "andar de cima". A idéia de que o problema fiscal brasileiro seria causado basicamente pelo gasto com os "poderosos", enquanto que o "povão" fica à míngua, é politicamente sedutora - como demonstra o retorno em popularidade que o presidente da República e outras autoridades, de qualquer governo, têm todas as vezes que fazem discursos contra "os ricos". Entretanto, a realidade dos números não autoriza esse tipo de conclusões maniqueístas. Aqueles que têm paciência de se debruçar sobre as estatísticas sabem que o Brasil construiu ao longo do tempo uma rede de proteção social extensa, com poucos paralelos no universo dos países emergentes. O número de pessoas que recebe recursos do governo, sem ter contribuído para isso, é gigantesco. Como se explica então o contraste entre esse fato e a realidade visível nas ruas de cidades como Rio ou São Paulo, com tantos problemas associados à violência e à situação dos jovens, especialmente nas periferias, mais suscetíveis à incidência de mazelas como as associadas ao tráfico de drogas? Parte do paradoxo decorre do fato de que as políticas assistenciais canalizam uma quantidade expressiva de recursos para fins de eficácia duvidosa. Uma política que em algum momento terá que ser revista é a dos benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas). A despesa assistencial é parte do processo civilizatório. Ter políticas assistenciais é o tipo de elemento que distingue uma sociedade civilizada da barbárie. Isso envolve considerações de ordem moral óbvia e perfeitamente defensáveis. Economistas e governo, porém, devem saber lidar com incentivos. E incentivos adequados são o tipo de elemento que distingue políticas públicas inteligentemente formuladas de políticas ineficazes. O que é o benefício da Loas? Trata-se de um pagamento correspondente a um salário mínimo, pago a quem tem 65 anos ou ficou incapacitado para o trabalho e não tem um histórico contributivo para o INSS. Tenho certeza que o leitor deve achar, compreensivelmente, que se trata de um benefício correto, pois todos queremos poder ajudar a quem está, supostamente, no "fim da linha" da escala social. Nada mais justo, em tese. Peço, porém, ao caro leitor, que procure responder três perguntas.

O Brasil precisa adotar o princípio do que nos Estados Unidos se chama de 'no pain, no gain': só recebe o benefício quem pagar por ele

Primeiro, qual é o incentivo para que um trabalhador que ganha em torno de um salário mínimo contribua para a Previdência Social, de modo a receber uma aposentadoria nesse valor aos 65 anos, se a lei lhe garante que irá receber o mesmo valor, na forma de Loas, sem ter que contribuir nunca para isso? Segundo, se a sua empregada doméstica lhe pedir um aumento real de 40 %, o pleito seria atendido? Por fim, assumindo uma inflação de 6% este ano, considerando o salário mínimo de R$ 300, entre dezembro de 1997 e de 2005 o salário mínimo terá aumentado 41% reais, enquanto que, mesmo com um aumento de 2% este ano, o rendimento médio real nas regiões metropolitanas terá diminuído 22% nesse período de 8 anos. É justo que o trabalhador que paga impostos em dia e dá duro para o salário chegar no fim do mês ganhe 22% menos do que quando começaram as crises, há 8 anos, que tanto afetaram o Brasil desde então, ao mesmo tempo que uma pessoa que nunca contribuiu para receber a sua aposentadoria ganhe hoje de graça uma remuneração real 40% maior que a de 1997? De vez em quando, em debates, sou premiado com comentários ácidos, qualificando minhas posições de "neoliberais". Esse tipo de postura exerceu uma péssima influência sobre a qualidade do debate econômico no Brasil, pelo abuso dessa qualificação durante anos para criticar qualquer raciocínio baseado no respeito à aritmética. Assim, a "acusação" lançada contra alguém de ser neoliberal dispensava o acusador de mergulhar na substância do tema. Eu não consigo definir se mostrar que se gasta 'x' reais numa rubrica é "neoliberal" ou não. O que sei é que em 1995, antes de começar o Loas, o Brasil pagava benefícios assistenciais, na forma de Rendas Mensais Vitalícias (RMV) a 1,2 milhões de pessoas e hoje paga benefícios assistenciais a 2,7 milhões, que nunca contribuíram para fazer jus a isso. Ninguém chega vivo aos 65 anos sem renda. É preciso substituir no país a cultura do Loas, pelo princípio do que nos EUA se chama de "no pain, no gain", de que para ter um benefício é necessário pagar por ele. Estabelecer a possibilidade de se receber algum benefício com uma contribuição inferior à de quem contribui para o INSS faz sentido, mas assegurar o mesmo valor à mesma idade que o INSS, não. No dia em que ficar claro que o governo não dará mais dinheiro de graça e que para receber algo, o cidadão terá que contribuir por algum tempo, o leitor pode ter certeza de que a receita do INSS vai aumentar e a informalidade vai diminuir. Elevar a elegibilidade do Loas para 70 anos, por um valor que seja um percentual inferior a 100% do salário mínimo, seria uma boa receita para isso. A opção não é entre argumentação neoliberal e sensibilidade social e sim entre políticas inteligentes e populismo perdulário - com o seu, o meu, o nosso dinheiro.