Título: Crise pode gerar dois tipos de eleitor
Autor: Maria Lúcia Delgado
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2005, Política, p. A6

Vários tipos de sentimentos tomam conta dos cidadãos brasileiros. Uns se sentem enganados, pois militaram no PT por vários anos ou votaram em Lula na última eleição por acreditarem, principalmente, que havia um outro modo de fazer política, diferente do modelo patrimonialista tradicional. O grupo dos céticos reforça o seu coro e deve ganhar muitos adeptos, em nome do lema "todos são farinha (estragada) do mesmo saco". Haverá, ainda, o crescimento dos anti-democratas, sejam as pessoas de esquerda que não crêem nas eleições e nas instituições políticas, sejam os de direita que desejam a escolha de um governante forte, para o qual não deve haver barreiras para implantar as "medidas necessárias" capazes de gerar ordem e progresso. Mas também haverá os que transformarão a raiva produzida pela crise num mote para se mobilizar em prol de mudanças, pressionando os políticos ou mesmo pensando em ampliar sua participação na esfera pública. Fica a dúvida quanto ao tipo de sentimento que irá preponderar entre os brasileiros. Isso dependerá da maneira como os políticos, a mídia e os formadores de opinião vão lidar com a crise daqui para diante. É possível imaginar dois cenários: no primeiro, o descrédito em relação à atual classe política transforma-se num veículo para a desconfiança na democracia, enquanto no outro a crítica às atuais práticas levariam a uma mudança na consciência cidadã e, por conseguinte, haveria uma maior mobilização para reformar a política, em vez de abandoná-la. O cenário mais negativo tende a acontecer se não houver uma profunda investigação e punição dos envolvidos. É preciso, com isenção e parcimônia, depurar o Congresso, particularmente a Câmara federal, onde o número de deputados que receberam recursos do "valerioduto" é muito alto. A eventual participação do governo deve ser analisada ao longo do caminho, mas seu julgamento será tanto mais sólido quanto mais rápido os parlamentares cortarem na sua própria carne. Para evitar o descrédito na democracia, é importante sinalizar que ninguém está acima da lei, muito menos o presidente da República. Porém, é necessário ter base jurídica e amplo apoio social para se iniciar a discussão do impeachment, uma vez que, como já escrevi antes, não estamos no parlamentarismo, com suas formas de voto de desconfiança. A mistura da figura do chefe do Estado com a do chefe de governo que há no presidencialismo exige mais cautela, até para que não façamos como alguns de nossos vizinhos que, em vários casos, desvirtuaram o impedimento constitucional do presidente, aumentando a instabilidade política, em vez de reforçar as instituições democráticas.

Está em jogo a confiança na democracia

No fundo, estamos no fio da navalha, visto que é preciso sinalizar à população duas coisas, simultaneamente: que há uma investigação profunda da participação do Governo Lula neste episódio, mas que a abertura de um processo de crime de responsabilidade não pode ser o único e nem o mais regular mecanismo de controle presidencial. Caso contrário, pode ser instaurada a idéia de que, a cada problema ou escândalo surgido, basta retirar o presidente que tudo será resolvido- visão, aliás, que tinha o PT antes de chegar ao poder, pedindo a queda dos governantes de três em três meses. O resultado disso poderia ser a criação de um golpismo latente. O Partido dos Trabalhadores contribuiria muito com a democracia brasileira se punisse de forma exemplar os seus políticos que participaram desse lamaçal - por exemplo, expulsando-os da legenda antes da votação de suas cassações pelo Congresso Nacional. Dessa maneira, além de reduzir o número de petistas que poderiam migrar para a esquerda anti-democrática ou então para o ceticismo apático, o PT mostraria aos eleitores em geral que o erro pode acontecer em qualquer partido, mas pode ser consertado por remédios democráticos. Como líder maior da agremiação, o presidente Lula também deveria participar dessa cruzada. Decerto que as investigações ocorrem em seu governo sem grandes constrangimentos, algo que deve ser louvado; contudo, com o avançar das averiguações, Lula precisa condenar, publicamente e com vigor, a atuação dos petistas responsáveis pela crise atual, inclusive aqueles que ocuparam postos na Esplanada, até para tornar minimamente crível a idéia de que não foi patrocinador de todo este imbróglio. Passada a fase de catarse e punição, muitos eleitores não se darão por satisfeitos - incluindo aí o reles colunista que vos escreve. Será preciso propor uma agenda de reformas que evitem a repetição do lamentável cenário em que vivemos. Lembro que, terminado o caso Collor, muitos comemoram o início de uma nova era, e hoje temos o Marcos Valério como o PC Farias redivivo. A mudança efetiva terá mais chances de ocorrer quanto menos predominar o cálculo eleitoral ou o desempenho orientado para os holofotes da fama. Em poucas palavras, os líderes políticos mais importantes do país precisam sinalizar aos eleitores que não só nomes serão trocados e punidos, mas novas regras e práticas serão propostas para o jogo eleitoral de 2006. Neste sentido, o presidente Lula poderia trocar os discursos vazios pela apresentação de projetos de interesse da nação, colocando num novo patamar a relação com a oposição e com o país. Os formadores de opinião e a imprensa têm uma responsabilidade enorme em evitar que os eleitores transformem o descrédito em certos políticos num passo para a desconfiança em relação à democracia. Trata-se de um momento diferente das Diretas Já e do impeachment de Collor, pois agora acabou a fase do maniqueísmo e dos inimigos fáceis, e passamos para o tempo da discussão dos meios que possibilitem o alcance dos fins que tanto desejamos -política limpa, crescimento econômico e igualdade social. Somente um eleitor mais consciente e sem mitos pode ser mobilizado para este desafio, e o surgimento de milhões destes cidadãos é tarefa que depende de como os líderes políticos e sociais irão lidar com a crise atual.