Título: Para além da crise
Autor: Carlos Ranulfo Melo
Fonte: Valor Econômico, 09/08/2005, Opinião, p. A10
Esquerda brasileira perdeu sua melhor chance na história e não adianta culpar as elites
O Brasil atravessa sua mais profunda e inesperada crise política desde a redemocratização. Profunda porque, ao contrário dos tempos de Collor, ela não se restringe ao Executivo, mas espraia-se pelo Congresso e atinge, em maior ou menor grau, todos os seus partidos relevantes. Inesperada porque traz em seu epicentro o PT, partido de quem, a julgar pelo desempenho de legisladores e administradores eleitos ao longo desses 25 anos, se esperava uma gestão correta do poder público. Não sabemos, ainda, até onde tudo isso vai nos levar. Mas, olhando para a frente, é possível apresentar três proposições. Em primeiro lugar, a crise abre uma janela de oportunidade no que se refere ao aperfeiçoamento de nossas instituições democráticas. A democracia brasileira não é, como afirmou recentemente o professor Fábio Comparato, "um mero disfarce ideológico, um roto véu que mal encobre a nudez da dominação oligárquica" ("Folha de S.Paulo", edição de 05/08/05). Regimes oligárquicos não são compatíveis com mecanismos independentes de controle ou com CPIs com poderes equivalentes às autoridades judiciárias. Tampouco são inclusivos e competitivos a ponto de ser possível à oposição de esquerda ganhar prefeituras, governos estaduais ou a presidência da República e, em sabendo como fazê-lo, governar. O arranjo institucional brasileiro padece de dois graves problemas: a maneira como se vota e o mecanismo de financiamento das campanhas. O voto em lista aberta cria uma legião de cidadãos sem representante - uma vez que transfere o voto dado a um candidato para outro sem que o eleitor tenha como referência o partido. Dificulta o exercício do controle sobre a atividade legislativa, mantém os partidos como personagens secundários na disputa eleitoral e inibe, graças ao acentuado grau de personalização imprimido à competição, a convergência entre a votação para os poderes Executivo e Legislativo. O sistema de financiamento, além de permitir que a quantidade de recursos arrecadados torne-se variável crucial na definição das chances de eleição de determinado candidato, convive com, e pode-se dizer que estimula, a prática do caixa dois e todas as mazelas daí decorrentes. É pouco provável que tais problemas sejam enfrentados agora, até porque o Congresso Nacional não reúne condições para tanto. Mas pode-se esperar, e cobrar, que o tema da reforma política seja alçado à condição de ponto prioritário na agenda para 2006 e os anos seguintes. Em segundo lugar, a crise torna mínima a chance de que, em um novo mandato, Lula seja bem sucedido. O atual governo, ao que tudo indica, chegará a 2006, mas enquanto projeto político não tem mais nada a apresentar. Simplesmente não é mais possível acenar com a perspectiva de mudança em meio a malas e malas de dinheiro. Qual seria a força propositiva de um novo mandato? Tão importante quanto: em que se apoiaria, agora que o PT vai ter que utilizar toda a sua energia para juntar os cacos e recomeçar? Como seria um governo Lula, sem o impulso da esperança, com a oposição fortalecida, o PT reduzido à condição de terceira ou quarta bancada no Congresso e, não nos esqueçamos, sem a possibilidade de um novo mandato? Lula tem todo o direito de se recandidatar; mas deve refletir muito antes de fazê-lo. Por mais duro que seja, reconhecer a derrota e dar um passo atrás é uma forma de preservar a liderança que possui. Liderança que pode desaparecer na aventura de uma empreitada acima dos partidos e diretamente conectada com as massas. Ora, dirão, mas isso é devolver o governo a seus donos anteriores. Pode ser, mas esse é o preço a ser pago. A esquerda brasileira - e em nada ajudaram as posturas do PDT, e de lideranças como Roberto Freire e Heloísa Helena - perdeu sua melhor chance na história e não adianta culpar as elites.
Se reconhecer seus erros e punir os responsáveis, PT pode sobreviver, ainda que enfrente suas eleições mais difíceis em 2006
Isso nos remete ao terceiro ponto deste breve artigo: se souber reconhecer seus erros e punir os responsáveis, o PT sobreviverá, ainda que as eleições de 2006 devam ser as mais difíceis de sua história. Pesquisa divulgada a poucos dias pelo Datafolha revela que o percentual da população que se identifica com o partido não caiu mesmo após três meses de crise intensa. Isso significa que o partido tem crédito entre seus simpatizantes. Mas levará tempo até se recompor e voltar a alçar vôos mais arrojados. Não estamos diante do primeiro caso, no Brasil, de um partido que sucumbe ao desafio de ser governo. Antes tivemos o PMDB, que até hoje não reencontrou sua razão de ser. Resta saber se o PT conseguirá fazê-lo. Nesse ponto, a idéia de uma "volta às origens" é ingênua e equivocada. O partido não pode jogar fora seu duro aprendizado ou desprezar o rico legado de suas bancadas e administrações. Legado sem o qual não seria criado o ambiente interno necessário para a postura mais moderada, responsável e aberta às alianças que permitiu a vitória de Lula em 2002. O problema é que o campo político que conduziu tal processo é o mesmo que agora se vê implodido pela crise, o que abre espaço para todos aqueles que, dentro e fora do partido, pretendem estabelecer uma associação, espúria, entre moderação política e degenerescência ético-moral. Se tal associação prevalecer, naquilo que algumas lideranças têm denominado de um processo de "refundação", as perspectivas do partido nos próximos anos não serão nada animadoras.