Título: Donna descarta 'chavenização' de Lula
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 09/08/2005, Especial, p. A12

Crise Ex-embaixadora diz que Lula negocia enquanto Chávez manda e que capacidade gerencial no Brasil é maior

Os recentes discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em que ele atacou as elites e voltou-se às camadas populares, levantaram discussões sobre a possibilidade de uma radicalização da política brasileira à la Venezuela de Hugo Chávez. A comparação é errada, diz a ex-embaixadora americana Donna Hrinak, nesta entrevista. "Não vejo nenhuma proximidade com o que aconteceu na Venezuela", afirma ela, ao analisar a crise brasileira. Donna acompanhou de perto a radicalização que culminou na frustrada tentativa de golpe contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em abril de 2002 - e cujo suposto apoio americano, aliás, ela nega enfaticamente. Deixou a chefia da embaixada americana em Caracas, poucas semanas antes do levante, para assumir a representação dos Estados Unidos em Brasília, onde permaneceu até junho de 2004. Hoje mora em Miami, onde trabalha em uma consultoria, após 22 anos servindo em postos na América Latina. Para a diplomata, a formação de Lula e de Chávez é completamente diferente. "Lula sabe negociar e conciliar interesses diferentes, o que é próprio do mundo sindical, enquanto a origem militar de Chávez invoca a idéia de obediência e confronto", diz. Donna ressalta as diferenças entre os momentos difíceis vividos pelos dois países e duvida de uma radicalização no Brasil. Destaca a saúde da economia, mas faz um alerta: "Os mercados não são amigos de nenhum país". Está convicta ainda de que o Brasil pode sair da crise com reflexos positivos, mas reconhece que a paralisação da agenda de reformas preocupa Washington. Leia abaixo a entrevista concedida por telefone, de Miami, ao Valor: Valor: Existem semelhanças entre a crise política no Brasil e a radicalização que tomou conta da Venezuela nos últimos anos? Donna Hrinak: A cultura política nos dois países é bem diferente, assim como as circunstâncias históricas. Eu passei três dias em Brasília no fim de julho. Uma coisa me impressionou muito. Deputados, senadores e até jornalistas estavam consumidos pela crise. Mas nos ministérios da Fazenda, da Justiça e do Desenvolvimento eu vi as pessoas cumprindo com as suas obrigações cotidianas na mais absoluta normalidade. Isso mostra que a crise é grave, mas não paralisou o país. Infelizmente, nunca observei na Venezuela uma capacidade administrativa e gerencial tão substantiva como eu vejo no Brasil. Valor: Os discursos feitos pelo presidente Lula nas últimas semanas fazem referência a enfrentamentos entre direita e esquerda, ricos e pobres, sulistas e nordestinos. Não é um caminho parecido ao seguido por Chávez? Donna: A formação dos dois é completamente diferente. Lula sabe negociar e conciliar interesses diferentes, o que é próprio do mundo sindical, enquanto a origem militar de Chávez invoca a idéia de obediência e confronto. As pessoas que estão mais perto de Lula sabem que ele não ganhou as eleições de 2002 só com o apoio das classes populares. Ele foi uma opção para ricos e pobres. Essas pessoas são suficientemente inteligentes para reconhecer que Lula precisa manter o apoio de todos os setores da sociedade, e não de parcelas. Valor: Mas a agressividade nos discursos recentes de Lula não indicam um clima de confronto com o que ele chama de "elites"? Donna: Não vejo nenhuma proximidade com o que aconteceu na Venezuela. É preciso lembrar o contexto em que Chávez chegou ao poder, em 1998. Foi dez anos depois de turbulência política, duas tentativas de golpe de Estado, uma decepção generalizada com os partidos e uma desestruturação da economia nacional. Tudo depende do petróleo e a evasão de divisas sempre foi muito grande. Nada que se compare à saída de recursos que houve no Brasil em 2002. No caso brasileiro, as empresas continuam fazendo os seus negócios, independentemente de como se comporta o governo. Os empresários mantêm o seu dinheiro no no país e investem no Brasil. Valor: Temos a impressão de que no plano técnico as coisas podem até estar andando, mas o andamento político e legislativo de projetos importantes ficou travado com a crise. O governo Lula acabou? Donna: Dizer isso é um exagero. Todo mundo esperava uma reforma tributária mais ampla e ela saiu incompleta do primeiro ano do governo Lula. Isso agora parece que vai demorar. Também vai ser difícil avançar nas imperfeições previdenciárias. Por outro lado, talvez seja mais possível ter uma reforma política, que é indiscutivelmente a mais difícil de fazer. O sistema brasileiro tem falhas sérias, que afetam a credibilidade dos políticos como um todo. A falta de fidelidade partidária e o caixa dois de campanha são um exemplo. É preciso que o país se debruçe sobre a reforma política de forma mais dedicada. Valor: Não é oportunismo discutir a reforma política em um momento de tantas investigações de corrupção? Donna: Os avanços de um país se dão justamente quando ele capta as oportunidades que se apresentam. Estamos falando de corrupção e de compra de votos como se tudo isso estive provado, mas ainda vejo mais acusações do que fatos incontestáveis. Se algum ensinamento se pode tirar de toda essa crise, qual é? A dificuldade dos governos brasileiros em montar uma coalizão cada vez que há uma votação importante no Congresso. O sistema não funciona mais do jeito que está. Não é condizente com um país que está tomando passos para tornar-se um líder global. Valor: A sra. disse que esteve em julho no Brasil. Pelo que viu por aqui, acha que a crescente tensão política pode contaminar a economia? Donna: Os mercados têm reagido de uma forma incrível, como se o Brasil estivesse numa categoria diferente de risco. Mas estejamos certos de uma coisa: eles não são amigos de nenhum país. Valor: O que é importante fazer, então, para continuar de bem com os mercados? Donna: Manter a mesma política econômica estável que tem havido nos mais de dois anos e meio de governo. Os investidores precisam saber que a condução da economia não sofrerá mudanças. A equipe econômica tem mantido um bom diálogo com os mercados, com o governo dos Estados Unidos e com as instituições financeiras multilaterais. A visita do secretário (do Tesouro americano) John Snow simboliza isso. Valor: Ou seja, enquanto a radicalização ficar só no discurso, tudo bem? Donna: O que um presidente diz obviamente tem peso para os investidores e ele não pode ir a extremos em suas palavras. Mas a radicalização da qual você fala, que na teoria até poderia acontecer, não vai tornar-se realidade na prática. A sociedade brasileira está madura. Li há dois ou três meses uma pesquisa que perguntava aos entrevistados se eles aceitariam mais inflação em troca de um crescimento maior da oferta de emprego. A grande maioria disse que não, e isso me impressionou. Mostra que os brasileiros aprenderam com o passado e não estão dispostos a aventuras. Valor: Como o governo americano está vendo a crise atual? Donna: Washington está acompanhando com muito interesse o que tem acontecido no Brasil, principalmente pelo papel de maior liderança que o país tem exercido nos últimos anos. Algumas vezes as táticas são diferentes, mas os valores do Brasil e dos Estados Unidos coincidem. Valor: Washington acompanha a crise com interesse ou com preocupação? Donna: (alguns segundos de silêncio...) Com preocupação, até o ponto em que a crise afeta a agenda das reformas. As reformas são urgentes e o mundo não vai esperar o Brasil aprová-las, mas eu duvido que a Casa Branca tenha medo de uma desestabilização no país. A situação vivida com a saída do Collor foi muito mais grave porque a democracia estava renascendo, mas as instituições sobreviveram. Não quero soar como uma Poliana. Sei que para muitos brasileiros está sendo uma decepção em vários sentidos, mas tudo isso a que o país está assistindo pode ter impactos positivos no futuro.