Título: Com bravata fiscal, economia corre risco
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 12/08/2005, Brasil, p. A2

O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, segundo interlocutores que com ele estiveram nesta semana, está entusiasmado com o fato de a taxa de juros nas alturas ter derrubado a inflação. Ele estaria apostando, agora, que o cumprimento da meta ajustada de 5,1% para o IPCA deste ano, possível diante da forte restrição monetária que elevou os juros para 19,75% ao ano, dará novo patamar de credibilidade à política econômica. Mesmo em tempos sombrios de crise política. Assim, não fará nada que possa vir a comprometer o trabalho do Banco Central, como, por exemplo, fixar uma meta de equilíbrio nominal das contas públicas que possa resultar em constrangimentos para o Copom gerenciar a política monetária. A equipe econômica espera chegar ao fim do ano com crescimento ligeiramente superior a 3% e juros nominais de 17,75% - o Copom poderia iniciar a partir de setembro uma redução gradual, na base de 0,25 ponto percentual ao mês. Ainda que 17,75% de juros nominais frente à projeção de inflação de 4,5% a 5% para 2006, representem juros reais de mais de 12%, considera-se esse um bom resultado para encerrar 2005. Enterrada a idéia do déficit nominal zero, sugerida pelo deputado Delfim Netto (PP-SP), a área econômica tenta encontrar espaço político para discutir a possibilidade de um reforço fiscal para engrossar a blindagem da economia a crises, elevando para 5% do Produto Interno Bruto (PIB) o superávit primário a partir de 2006, em lugar dos 4,25% do PIB, e até, quem sabe, colocando essa meta de longo prazo nas disposições transitórias da Constituição, tal como Delfim Netto propôs para o equilíbrio nominal. "Isso não é tabu para nós", comentou o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. O fortalecimento da meta fiscal está sob análise no âmbito de uma proposta de emenda constitucional (PEC), em elaboração pelos ministérios da Fazenda e do Planejamento, que limitaria os gastos correntes para os próximos dez anos, tornaria inconstitucional qualquer criação de despesa sem receita correspondente ou corte de gasto equivalente, e acenaria com a redução gradual da carga tributária. Algo como 0,25 a 0,5 ponto percentual de redução dos impostos ao ano, também nos próximos dez anos, segundo o ministro. Se a premissa é que um maior rigor fiscal aumentará o grau de proteção da economia à turbulências políticas, o contrário também é verdadeiro: atos de irresponsabilidade fiscal podem contaminar a economia, até agora sem maiores sobressaltos. A irresponsabilidade germina das ruínas das relações entre governo e Congresso e fica visível na batalha que se trava, hoje, na elaboração do orçamento para 2006. Na quarta-feira o governo sofreu brutal revés quando o Senado, em rebeldia política e negligência com a aritmética, espetou no caixa da União uma conta de R$ 16,4 bilhões para este ano e R$ 50 bilhões em 2006. Despesa vinda da aprovação da emenda do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) que elevou o salário mínimo para R$ 384,00 este ano e R$ 561,00 em 2006. Como se trata de um gasto impagável, sem contar os efeitos desse salário mínimo sobre os gastos com pessoal e previdência dos 5.500 municípios, o governo tentará derrubá-lo na Câmara. Se não conseguir, certamente o presidente Lula vetará. Mas a predisposição belicosa continuará movendo as relações entre Executivo e Legislativo, entre PT e oposição.

Proposta de déficit nominal zero foi enterrada

A irresponsabilidade fiscal ficou clara, também, na pressão da bancada ruralista para incluir, junto com a prorrogação das três parcelas de dívidas vincendas agora para março, abril e maio de 2006, verbas no orçamento do ano que vem para outras repactuações de dívidas que por ventura venham a ocorrer. Isso, sem que se fizesse uma simples conta de somar para calcular do que se trata, relata Paulo Bernardo. Nesse clima, prevalece o salve-se quem puder. E se salvará melhor quem arrancar mais dinheiro da União. É em meio a esse ambiente que a área econômica tenta debater um reforço da política fiscal a partir de 2006, ciente de que qualquer iniciativa será de difícil aprovação no Congresso. Ontem o IPEA teve que cancelar um simples seminário que ocorreria pela manhã, marcado há um mês para discutir os rumos da política fiscal, tendo como mote a proposta de Delfim Netto. Neste seminário, o governo apresentaria o esboço de sua proposta de PEC que, se bem recebida, seria formalizada em 30 dias. Segundo o ministro do Planejamento, a decisão de suspender os debates foi tomada em acordo com Palocci para que o evento não se transformasse em "bate-boca" dos ministros com políticos da oposição por causa da aprovação do salário mínimo de R$ 384,00. De qualquer forma, a proposta de Delfim Netto foi engavetada por Palocci e prevaleceu a visão do Banco Central de que juros é algo incontrolável, depende das pressões inflacionárias e não pode estar amarrado a uma meta constitucional. Os juros são o cerne do problema. A discussão entre ter como meta um superávit primário de 5% do PIB nos próximos anos ou atingir o equilíbrio nominal num determinado prazo reflete exatamente a exposição do peso dos juros nas contas públicas. Nos doze meses até junho, o superávit primário acumulado foi de R$ 94,87 bilhões (5,08% do PIB). No mesmo período, o Tesouro Nacional pagou R$ 146,55 bilhões de juros da dívida pública (7,85% do PIB). O déficit nominal, resultado da diferença entre o primário e a conta de juros, foi de R$ 51,67 bilhões (2,77% do PIB). Ainda que o superávit primário esteja hoje bem acima da meta de 4,25% do PIB, a dívida líquida continua elevadíssima como proporção do PIB, frente aos padrões hoje aceitos para países emergentes, algo abaixo de 40%. Em doze meses até junho, a dívida líquida representava 50,9% do PIB e a bruta, 73,7% do PIB. Diante disso, os juros não caem. A economia está mais forte pelo brutal ajuste das contas externas, pelos rigores monetário e fiscal e pela amigável situação do mundo, mas não é imune a contágios. Enquanto as denúncias de corrupção não atingirem o presidente, a economia permanecerá apartada da crise pelo fio da racionalidade. Se este se romper...