Título: Geração de 64 perde seu último grande líder de esquerda
Autor: Paulo Emílio
Fonte: Valor Econômico, 15/08/2005, Especial, p. A12

Miguel Arraes de Alencar era a última grande liderança de esquerda da geração de políticos que resistiram ao golpe de 1964. Em quase 50 anos de vida pública, a imagem que mais recorria para definir sua missão na política era a do Palácio do Campo das Princesas, sede do governo pernambucano, que amanheceu no dia 1º de abril sob a mira de canhões do 4º Exército que, durante quase 24h, tentaram, em vão, convencê-lo a renunciar. A princípio, pensou em resistir, mas logo se convenceu de que a idéia "seria um suicídio e levaria a um banho de sangue em Pernambuco", disse, em depoimento ao seminário "O Golpe de 64 - 40 anos Depois", promovido pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). "Decidi, então, aguardar passivamente para ser preso e para o que o destino me reservaria naquela situação". As tropas logo entraram no Palácio. Arraes recebeu voz de prisão. Foi o único dos dirigentes alinhados ao presidente João Goulart a ser preso. A resistência de estudantes ao cinematográfico cerco do Palácio das Princesas levou a duas mortes. Seu nome foi o quarto da primeira lista de cassados, atrás apenas do presidente João Goulart, de Luiz Carlos Prestes e de Jânio Quadros. Nascido em 15 de dezembro de 1916 em Araripe, cidade cearense a 40 km da divisa de Pernambuco, estudou direito no Recife, onde fez concurso para o Instituto do Açúcar e do Álcool. Lá conheceria Barbosa Lima Sobrinho, que, eleito governador, convidaria Arraes a assumir a secretaria da Fazenda. Sua estréia nas urnas viria em 1948 com um mandato de deputado estadual pelo PSD. Onze anos depois, seria eleito prefeito do Recife, cargo ao qual renunciou em 1962 para candidatar-se ao governo do Estado. Enfrentou o candidato da UDN, João Cleofas, cuja campanha recebeu recursos do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), financiado pelo governo americano. Como governador, celebrou o que ficou conhecido como "Acordo no Campo", que estendeu o salário mínimo fixado por lei federal a todos os trabalhadores rurais do Estado e estabeleceu regras para impedir que, a cada aumento anunciado pelo governo, os proprietários aumentassem o tamanho da gleba a ser cultivada. Seu governo também promoveu os Movimentos de Cultura Popular, de onde nasceram as primeiras campanhas de alfabetização de adultos do educador Paulo Freire. Em 3 março de 1964 seu governo foi vítima de um lockout contra greves de trabalhadores de açúcar que tinha por objetivo forçar uma intervenção federal. Dez dias depois, participaria do comício da Central do Brasil, no Rio, com Jango, e de lá sairia com a certeza de que o desfecho seria o golpe. De sua deposição, até o habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 1965, ficou a maior parte do tempo no presídio de Fernando de Noronha. De lá saiu um único dia - 7 de agosto de 1964 - para assistir ao casamento da filha, Ana Lúcia, com Maximiniano Campos. Como era Dia dos Pais, os filhos pequenos lhe prepararam desenhos, que foram confiscados pelos oficiais do Exército. Foi libertado nove meses depois e levado para o Rio onde, ameaçado pela Lei de Segurança Nacional, conseguiu exílio na Argélia. Seguiu na companhia da segunda mulher, Maria Madalena Fiúza Arraes de Alencar, para 14 anos de ausência do Brasil. Seus nove filhos (o décimo nasceria no exílio) apenas se reuniriam aos pais em 1969. Assistiu, do exílio, à reorganização da esquerda brasileira e ao surgimento do PT. Em entrevista concedida em 1978 ao jornal "O Estado de São Paulo", em Paris, já delineava suas diferenças em relação ao surgimento da organização política dos sindicalistas -"Não se podem desvincular as reivindicações operárias daquelas da massa pobre do país da qual se originou o próprio operário e para onde ele retornará se as condições de rotatividade se agravarem". Na Argélia, traduziu alguns de seus livros e manteve sociedade em uma livraria em Paris com o militante também cassado José Maria Rabelo. Ao retornar do exílio, em setembro de 1979, depois da Lei da Anistia, que suspendeu sua pena de 23 anos de prisão por crime de subversão, Arraes viu que seu desconforto em relação à esquerda brasileira não se resumia ao nascente PT. Quase 20 anos depois de ter retornado ao Brasil, durante comício na cidade de Salgueiro, no sertão pernambucano, Arraes diria que o momento mais difícil de sua vida não tinha sido o golpe, a prisão ou o exílio, mas a retomada de sua vida política em 1982. Apesar do comício de 60 mil pessoas preparado para recebê-lo, momento que sua esposa, Madalena, definiu como o mais emocionante da sua vida, Arraes enfrentou uma campanha a deputado federal com pouca inserção na máquina partidária do PMDB, partido no qual ingressara ainda durante o exílio. Vetado pelos moderados do partido a integrar sua Executiva Nacional, Arraes adotou uma postura conciliadora em 1985 ao ser um dos primeiros esquerdistas do partido a defender o voto em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Em 1986 foi eleito pela segunda vez ao governo do Estado. Enfrentou greves do funcionalismo e crises com o Judiciário e o Legislativo desde o início de sua gestão. Eleito pela região metropolitana do Recife, voltou sua gestão para os pequenos produtores rurais e foi acusado de assistencialismo por financiar a compra de uma vaca, contratar canavieiros na entressafra para trabalhar em obras públicas e oferecer financiamento para a compra de um motor-bomba para a irrigação. A obra de maior vulto da qual costumava se orgulhar era a universalização da eletrificação rural no Estado. Em 1989 foi contrário ao lançamento da candidatura presidencial de Ulysses Guimarães e acabou apoiando Leonel Brizola. No segundo turno, apoiou a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Chegou a encontrar-se com o ministro-chefe do SNI, Ivan de Souza Mendes, para tranquilizá-lo sobre o futuro do país sob os auspícios de um eventual governo petista. Com a derrota, acusou os defensores da candidatura de Ulysses Guimarães de terem contribuído para dividir o partido, abrindo caminho para Fernando Collor de Mello. O desgaste levaria à sua saída do partido e ao ingresso no PSB, legenda pela qual disputaria, pela terceira vez, o governo do Estado, em 1994. Nesta eleição já havia conseguido inverter seu desempenho na geografia eleitoral do Estado. Foi maciçamente votado pelos sertanejos que, em 1986, tinham sido o principal alvo de suas políticas de governo. Foi o único governador da história do Estado a ser eleito para três mandatos. Foi durante essa gestão que envolveu-se no que ficou conhecido como o "Escândalo dos Precatórios", a emissão irregular de títulos públicos destinados a arrecadar recursos para pagamento de dívidas judiciais. Na companhia de Divaldo Suruagy, governador de Alagoas, Paulo Afonso, governador de Santa Catarina e Celso Pitta, prefeito de São Paulo, foi citado pela Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou o caso. A operação, de acordo com o Dicionário Histórico e Biográfico Brasileiro, arrecadou R$ 402 milhões com a emissão de 408 mil precatórios. A dívida com precatórios era de apenas R$ 48 milhões, sendo o restante depositado na conta única do Estado. A operação foi defendida pelo secretário da Fazenda e neto de Arraes, Eduardo Campos, sob o argumento de que a lei recomendava "prioritariamente" e não "exclusivamente" o uso desses recursos para o pagamento de precatórios. Arraes, no entanto, assumiu como sua a decisão de lançar os títulos para aliviar a penúria financeira do Estado, que comprometia 82% de sua receita com o funcionalismo público. Mais tarde, seria absolvido, pelo Supremo Tribunal Federal, no processo que questionava a legalidade da operação. A crise foi em grande parte responsável pela derrota de Arraes na disputa pela reeleição, em 1998. Decidiu sair candidato, mesmo convencido de que não teria chance de vitória contra a candidatura de Jarbas Vasconcelos, que acabou levando no 1º turno por uma diferença de mais de um milhão de votos. Dedicou a campanha, a reforçar o mito. Adotou slogans como "Abaixo de Deus, só Arraes na defesa desse povo sem sonho". Nos comícios, nos lugares mais ermos do Estado, dedicou-se a passar em revista os momentos de sua carreira política, como se quisesse deixar fixado, no imaginário do eleitor, sua versão para as muitas controvérsias de seus governos. Nesses discursos, definiu recorrentemente sua missão política como a de "ensinar ao povo o que ele tem direito". Duas referências políticas sempre tiveram lugar no seu discurso - Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes. O primeiro, dizia, por representar o nacional, e o segundo, por simbolizar o popular. E atribuía os problemas do Brasil, em grande parte, à dificuldade de suas lideranças políticas em conciliar essas duas visões.