Título: Prestidigitação
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2005, Brasil, p. A2

Neste "suelto" pretendemos tratar de dois assuntos correlatos. O primeiro trata do verdadeiro "cabo de guerra" estabelecido entre os economistas que defendem que não há sobrevalorização cambial, pois ela seria produzida pelo "fantástico aumento da produtividade nacional", e aqueles que, mesmo reconhecendo um "modesto" aumento de produtividade, acreditam que parte importante da enorme sobrevalorização da taxa cambial é gerada pela compra de reais na BM&F através de derivativos (e outros instrumentos), que permitem a arbitragem entre a monstruosa taxa de juro real interna e a taxa de juro real externa. A essa altura do ano, o real é a "commodity" mais procurada pelos grandes especuladores (internos e externos) pela, essa sim, "fantástica", taxa de retorno que tem proporcionado.

Os elementos empíricos de que se dispõe mostram que o real é, hoje, a moeda mais valorizada do mundo frente ao dólar americano. Quando comparamos o real no último ano com relação a três categorias de países (desenvolvidos, emergentes do ocidente e asiáticos), encontramos coisa parecida com a revelada na tabela ao lado (médias não ponderadas): A imensa valorização produzida pela "compra de reais" no futuro é absolutamente insensata, não apenas pelos prejuízos que causa ao nosso setor exportador, mas porque o "subsídio" inadvertidamente introduzido na taxa de câmbio permeia toda a economia e vai gerando distorções no sistema de preços relativos. Por exemplo, quando os exportadores aceleram os seus ACCs para "compensar" o câmbio, eles criam um sistema de "taxas duplas". O subsídio cambial é pago pelo Tesouro, na forma do maior dispêndio com juros que valoriza o real. Quando, pela imensa sobrevalorização do câmbio que dificulta a exportação e aumenta a oferta interna, os preços da carne caem 15% em reais no inverno, subsidiamos o consumo de carne e baixamos artificialmente o IPCA. Quem paga o subsídio? O Tesouro, obviamente! Com essa "ex-perteza", reduzimos a inflação à custa de um subsídio generalizado, que distorce todos os preços relativos e, salvo melhor juízo, reduz a eficiência do sistema de preços. Mais do que isso, restabelece o famoso "orçamento monetário" (sem controle do Congresso), que no período jurássico foi o instrumento dos dinos para escapar do "orçamento fiscal"... É por isso que, tendo feito um superávit primário de R$ 60 bilhões no primeiro semestre, tivemos de pagar R$ 80 bilhões de juros! Além do mais, produzimos uma substancial transferência de renda dos que "trabalham" para os "rentistas".

Isso nos leva ao segundo assunto: o temor generalizado do sistema financeiro (particularmente do Banco Central) sobre o estabelecimento de uma meta fiscal que escolha um particular ano (no futuro próximo: quatro ou cinco anos) em que deverá ser eliminado o déficit nominal, ou seja, que naquele ano a "conta de juros" deverá ser completamente saldada pelo "superávit primário", o que explicitará o "custo" da política monetária. A brilhante idéia de concentrar a atenção sobre o "superávit primário" em lugar do "déficit nominal" decorre da retórica mistificadora combinada com o FMI quando financiou o Brasil em 1998, depois de termos "quebrado" graças à política cambial executada entre 1995 e 1998. O gráfico abaixo mostra que todo o "esforço" feito pelos governos FHC e Lula para manterem "superávits primários" terminou no assalto ao contribuinte: eles sempre foram gerados pelo aumento da carga tributária, sem nenhuma redução das despesas. O único "esforço" válido foi realizado no governo Itamar Franco, quando a própria relação dívida/PIB diminuiu. No primeiro mandato, FHC fez uma política fiscal irresponsável: nenhum "superávit primário", mas um aumento da despesa primária (isto é, excluídos os juros) de menos de 23% para mais de 29% do PIB. Quando foi forçado a produzir o "superávit primário", simplesmente promoveu mais um assalto ao bolso dos contribuintes, aumentando a receita na exata proporção dos "superávits" primários exigidos. E o que aconteceu com a relação dívida/PIB? Ela apenas patinou em torno dos 50% nos últimos seis anos. Foi a isso que nos conduziu a retórica da escamoteação. E o mesmo acontecerá nos próximos 12 anos, enquanto acreditarmos nos nossos maravilhosos prestidigitadores...