Título: No olho do furacão
Autor: Rachel Meneguello
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2005, Opinião, p. A10

PT terá que reconhecer papel central da esquerda e, ao mesmo tempo, apoiar Lula

O líder do PFL no Senado Federal, José Agripino, afirmou na semana passada que "não adianta querer impor o impedimento [do presidente] sem a vontade popular. Seria coisa de amador". De fato, mesmo com o agravamento das denúncias contra o governo e o contra o Partido dos Trabalhadores, o governo Lula mantém, em meio à crise política e com a queda de alguns pontos percentuais, um apoio nada desprezível, com pouco mais 30% de avaliação positiva. Para chamar a memória política, lembre-se que a poucos meses do impeachment, em outubro de 1992, o então presidente Collor recebia uma avaliação positiva de apenas 9%. São situações distintas e mais distintos ainda são os dois presidentes, mas a comparação cabe para apontar que, para uma nação com forte cultura presidencialista, considerar o apoio ao presidente da República segundo os referenciais da opinião pública tem enorme importância para as saídas de uma crise. A intensa informação à qual a população vem sendo exposta qualifica esses números. Os brasileiros nunca acompanharam tão de perto e cotidianamente as movimentações de uma crise política com a transmissão diária dos acontecimentos. Já no início da crise no mês de junho, 75% da população brasileira afirmavam-se informados sobre as denúncias do deputado Roberto Jefferson. Depois de dois meses repletos de revelações, segundo a mais recente pesquisa do Instituto Datafolha, 83% dos brasileiros acreditam na existência de corrupção no governo; ainda assim, 63% afirmam que não há motivo para abertura de um processo de impedimento do presidente pelo Congresso. Após o discurso do presidente na última sexta-feira, as diferentes reações de lideranças e grupos mostraram, no cômputo final, que o que se quer preservar é a rota de estabilidade e manutenção dos índices de crescimento e, para isso, manter como está a linha hierárquica do poder nacional é um suposto. Além disso, se no início da crise era possível supor que boa parte da oposição não recuaria frente às chances de construir um cenário de impeachment, hoje parece mais plausível vê-la cevando o definhamento das possibilidades eleitorais de Lula em 2006, sobretudo à luz das últimas simulações do Datafolha nas quais, pela primeira vez, o presidente ganha fragilidade. Mas ao lado desta crise de governo está a crise de representação política, que atinge partidos e parlamentares e coloca as instituições representativas e o funcionamento do Estado na rota de profunda desmoralização pela opinião pública. Este cenário é antigo. As pesquisas de opinião realizadas desde os anos 90 sobre a avaliação dos parlamentares e das instituições políticas mostram que, até agora, a democracia de 1985 não foi capaz de resgatar a confiança no sistema representativo. Em parte, a crescente percepção negativa deve-se à maior visibilidade dos conflitos no Congresso, levando a que população redimensione sua avaliação da política a partir do acesso ao seu funcionamento real. Como consequência, a perda de credibilidade no parlamento, nos partidos e nos políticos é uma tendência crescente, atingindo boa parte do eleitorado brasileiro: hoje, quase 50% dos eleitores avaliam mal o desempenho dos deputados e senadores. Nesse cenário em que a reforma política reaparece como uma das medidas necessárias principais, cabe ponderar que mesmo que uma reforma acerte o ponto das alterações para regular o funcionamento das campanhas e dos partidos, o eleitorado levará bom tempo para recuperar-se do desgaste das instituições e superar o descrédito e o desencanto com a política.

Para boa parte da oposição não interessa o impeachment, mas jogar com o desgaste eleitoral do presidente Lula

Esta crise de representação, no entanto, tem um aspecto novo e mais grave: a credibilidade cai juntamente com as referências sólidas que o PT abrigou desde sua fundação sobre a ética, a moralidade pública e as formas de fazer política. As declarações das lideranças petistas, na CPI e fora dela, sobre o descontrole do partido frente a dinâmica eleitoral, e as relações equivocadas contraídas com o Estado, nivelaram o PT aos partidos convencionais e às máquinas de clientela. Por um lado, está claro que o partido não soube dar conta dos constrangimentos impostos pelas condições políticas de governabilidade e agora paga o preço das opções feitas para a formação de maiorias parlamentares. Mas, por outro lado, e para além das irregularidades cometidas pelas lideranças, a experiência do PT no poder nacional põe fim ao ciclo original de vida do partido, ao revelar que a centralização de sua estrutura, produzida para responder às imposições do sistema em nível nacional, resultou na completa autonomia do grupo partidário associado ao governo, e conferiu-lhe um grau discricionário de poder. A afirmação de parlamentares e lideranças partidárias do desconhecimento sobre as ações da direção petista destituída mostram o descolamento daquele grupo e apontam a grave crise de organização interna revelada agora com sua maturidade. Durante duas décadas de construção partidária, o partido estruturou um funcionamento à base de vínculos valiosos entre as várias instâncias, constituindo um corpo político articulado em organismos de participação e deliberação, que deram forma ao projeto de democracia interna e traduziram grande parte da novidade petista no conjunto dos partidos. O PT encontra-se hoje despojado de seu caráter inovador, e os rumos da nova direção devem incluir, de início, a recuperação de suas bases, a religação com movimentos sociais e a revitalização de sua dinâmica interna. Para que a credibilidade nos partidos se recupere, mesmo que lentamente, e para que o PT reassuma seu lugar de principal representante da esquerda partidária, o partido precisa mostrar ao eleitorado que 25 anos de construção institucional sólida não são descartáveis. A reconstrução tem seu dilema: o partido terá que reorganizar-se internamente, redimensionando os espaços de poder entre os vários grupos, em um processo que reconheça o papel central da esquerda partidária e, ao mesmo tempo, terá que dar sustentação ao governo Lula, que mantém seu equilíbrio à base de uma condução econômica refutada por essa mesma esquerda. Finalmente, quanto às lideranças envolvidas nesta crise, o mínimo encaminhamento partidário aceitável é o que os ponha a assistir à distância a refundação provocada.