Título: Progressão na berlinda
Autor: Oliveira, Noelle; Medeiros, Luísa
Fonte: Correio Braziliense, 14/04/2010, Cidades, p. 26

Especialistas abrem debate sobre a concessão do benefício aos condenados por crimes hediondos

A prisão do assassino confesso Adimar de Jesus da Silva, acusado pela morte de seis adolescentes em Luziânia, cidade goiana a 70 km de Brasília, reacendeu a discussão a respeito da reintegração de presos à sociedade. Especialistas e juristas se dividem ao avaliar os requisitos necessários para a Justiça soltar um preso com o perfil do maníaco. Alguns defendem mudanças na Lei de Execuções Penais e na de Crimes Hediondos ¿ já modificada em 2007. Outros culpam o Estado por não acompanhar devidamente os condenados após a saída da prisão.

Para o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o episódio de Luziânia demonstra uma falha sistêmica.¿É, portanto, fundamental verificar onde falhou e procurar fazer as correções necessárias para que fatos como este não tornem a acontecer. Foi algo de extrema gravidade e mostrou a inoperância do sistema¿, destaca. Ele não considera, no entanto, que a culpa pela tragédia seja do magistrado responsável pelo caso, mas sim da legislação. Adimar Jesus iniciou sua série de crimes contra os jovens apenas uma semana depois de ganhar a liberdade, beneficiado pela progressão de pena. Ele havia sido condenado por abusar sexualmente de dois meninos, no Distrito Federal, em 2005.

Para a psiquiatra forense da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e perita da Justiça Federal do estado de São Paulo Thatiane Fernandes da Silva, um dos problemas existentes hoje na lei brasileira, é o fato de caber ao juiz a decisão final sobre a liberação ou não de um preso como Adimar. A avaliação psicológica a que são submetidos os detentos é encaminhada ao magistrado que pode optar por seguir a recomendação, utilizá-la parcialmente ou descartá-la. ¿Eu acho que o complicado é, justamente, compreender quem pode ou não acatar um laudo como esse. O juiz acaba sendo o perito dos peritos¿, considera.

Sem cura Segundo Thatiane, uma das coisas que justificaria Adimar não ser solto seria o fato de o exame criminológico feito pela Subsecretaria do Sistema Penitenciário do DF, apontar que ele apresentava ¿distúrbios psicopatológicos¿. ¿Para o fato de ele ser psicopata não há cura, a não ser o encarceramento¿, afirma. De acordo com a psiquiatra, o acusado só pode ser liberado quando ¿cessa a periculosidade¿. No caso de psicopatas, no entanto, isso não ocorre nunca. ¿Um psicopata não consegue se colocar no lugar do outro, ele não tem culpa, não se comove nem se importa com o outro. Tudo o que ele quer é se satisfazer e a morte da vítima, muitas vezes, faz parte dessa satisfação¿, destaca.

A procuradora do Ministério Publico de São Paulo Luiza Egib Eluf, especialista na área criminal em crimes sexuais, defende que haja uma modificação na lei para obrigar o acompanhamento psiquiátrico de presos, dentro e fora da cadeia, que tenham cometido crimes sexuais e de violência exacerbada. Segundo ela, esse tipo de condenado não se recupera e sempre será uma ameaça à sociedade. Tem que gastar com os loucos de todos os gêneros para evitar que voltem a deliquir. Quem vai dizer que o cara é perigoso é o psiquiatra, não adianta ter bom comportamento no presídio. Isso não significa que a pessoa está curada. Lá não tem criancinha. Quando sai às ruas, o psicopata não consegue evitar o impulso de cometer o crime, explicou a procuradora.

Na opinião de Luiza Eluf, a modificação na Lei de Execuções Penais ou na de Crimes Hediondos deve ser amparada por uma estrutura governamental. De nada adianta endurecer o conteúdo das legislações se o Estado não tem como fornecer a assistência. Por isso, a procuradora é contrária a retirada da obrigatoriedade da realização do exame criminológico dos presos antes do juiz decidir pela progressão de regime. Acabaram com a necessidade do laudo para o governo não ter que oferecer tratamento, critica ela. A especialista acredita que a progressão de regime estabelecida em lei não pode ser aplicada para todos os tipos de crime de forma linear. A lei não faz distinção. Diz apenas que o preso deve cumprir pena de 1/6 para ter o benefício. Mas isso é o mínimo, e não o tempo máximo de prisão, destaca.

O professor de Direito Criminalista e Penal da Universidade de Brasília (UnB) Pedro Paulo Castelo Branco defende uma avaliação criteriosa para a progressão de regime e mais vigilância do estado para casos de crimes como estupro e pedofilia. Apesar do Supremo Tribunal Federal ter entendido que mesmo a pessoa que cometeu crime hediondo tem direito a progressão de regime, o professor salienta que o poder público tem que criar mecanismos para definir um regime disciplinar diferenciado para quem apresenta alto risco à sociedade. O critério tem que ser mais rigoroso. A doença mental que traz em si fica adormecida até sair em liberdade.

Já para Frederico Donati Barbosa, conselheiro da seccional do DF da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), a prisão do assassino não é a cura para evitar a reincidência. ¿A pena de prisão é como uma anestesia, ela apenas neutraliza o condenado e alivia a dor da sociedade¿, avalia. Ele acredita que o fato de um laudo psicológico afirmar que haverá reincidência de um crime, por parte de um detento, é algo que ¿nega o livre arbítrio¿. ¿Não consigo ver um profissional garantir que a pessoa pode cometer um crime novamente¿, considera.

Mendes reconhece falhas

Samanta Sallum

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Gilmar Mendes, apontou que os crimes cometidos por Adimar Jesus da Silva revelam o desaparelhamento do sistema judicial no Brasil. ¿Infelizmente, temos que discutir uma questão como essa logo após uma tragédia. Precisamos tirar lições sérias de episódios como esse para que busquemos um adequado aparelhamento da Justiça Criminal¿, disse ontem Mendes ao Correio.

A controversa soltura do pedreiro, com divergência da laudos de avaliação psiquiátrica do preso, mostra a falha de uma estrutura para realmente acompanhar casos em que há distúrbios mentais. ¿Nesses crimes em que ocorre desvio psicológico evidente, é preciso que haja realmente cuidado. Faltam equipes multidisciplinares e também a participação de setores outros da sociedade, como das universidades, na colaboração com os peritos judiciais¿, avalia o ministro. Segundo ele, é preciso garantir o tratamento dessas pessoas e não atacar o regime do benefício de progressão da pena. ¿Nada nos garante também que um preso após cumprir toda a sua pena, digamos de 30 anos, não venha a cometer outro delito¿, pondera.

Mendes defende o monitoramento eletrônico de presos em regime semi-aberto. ¿Propomos mudanças administrativas e legislativas para que ocorra uma modernização do controle dessas pessoas. É uma escolha a se fazer pela segurança pública¿, destaca.

O ministro apontou que os mutirões carcerários realizados no ano passado apontaram o grande deficit na área da Justiça Criminal. Segundo o ministro, da mesma forma que pode ter ocorrido falha na liberdade de um preso como Adimar é preciso corrigir a irregularidade de diversas pessoas presas sem base legal. Cerca de 20 mil presos em todo o país ganharam a liberdade nos mutirões carcerários por estarem detidos de forma ilegal. Foi o caso de um homem no Espírito Santo, mantido em prisão temporária por 11 anos sem ter sido julgado.