Título: Presidente age para ter derradeira semana de sobressaltos
Autor: Rosângela Bittar e Jaqueline Paiva
Fonte: Valor Econômico, 17/08/2005, Especial, p. A20

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está no comando das operações de salvamento de seu mandato e sua gestão que envolvem a instalação de um tríplice batalhão integrado por assessores, ministros e parlamentares, munidos de um elenco de ações voltadas para o governo, o Congresso e o seu partido, o PT. Se chegou em hora tardia, a intervenção ainda está em tempo, avaliam alguns dos soldados da crise. O governo ainda não pode se desligar, ainda vive em sobressaltos, mas acredita que esta situação vai durar, no máximo, mais uma semana. Porque, ontem, hoje e amanhã, ainda transcorreriam os depoimentos dos tesoureiros do PL e do PTB, já realizados, e possivelmente um novo depoimento do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, na CPI do Mensalão, marcado para hoje mas com pedido de adiamento já apresentado e aceito para amanhã. Depois disso, a esperança é que não haja mais surpresas e o recomeço de tudo se torne possível, com o elenco e o script traçados por Lula. Conta uma testemunha ocular dessa história, tal como a viveu nos últimos dois meses, que o milagre da reação ocorreu há apenas três ou quatro semanas, não mais que isto. O carrão do Silvio Pereira, secretário-geral do PT à época em que ganhou de presente o Land Rover de uma empresa privada interessada em negócios na maior estatal do país, foi tão chocante para todos que se transformou no toque com poder de despertar o presidente e seu staff da Presidência, os coordenadores e líderes das duas bancadas do PT no Congresso, e a cúpula do partido, com todos os que em torno dela gravitam, à realidade dos fatos. As denúncias contra Luiz Gushiken, então ministro da Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica, responsável pela distribuição das verbas de publicidade do governo, com total ascendência sobre os profissionais que decidem a distribuição das verbas de publicidade das estatais, já haviam detonado todos os sinais de alerta do Palácio do Planalto. Só a partir do depoimento do Silvio Pereira, porém, com o aparecimento de prova de corrupção concreta e compreensível para qualquer um, que o governo e o PT, tangidos pelo presidente, começaram a se organizar e dar os primeiros passos para segurar o poder obtido nas urnas há apenas dois anos e meio. O presidente, pessoalmente, definiu os papéis. Criou um grupo em torno de si, no Palácio do Planalto, definindo a missão de cada um dos seus integrantes. Assim, o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, ficou encarregado de conversar com o setor financeiro, acalmar os mercados interno e externo, e falar com as empresas de comunicação. O ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, incumbiu-se do PSDB de São Paulo (o maior adversário do PT), onde tem amigos de muitos anos. Ficou responsável também pelo contato com o PFL, a parte denominada, dentro do governo, de PFL cliente, que é o grupo do senador Antonio Carlos Magalhães, cliente dos serviços jurídicos do ministro em outros tempos. Ficaram também na sua alçada os contatos com advogados e juristas que pudessem ajudar a destrinchar as questões da crise. A Ciro Gomes, agora no grupo palaciano, foi dada a missão de amaciar o PSDB de Minas Gerais, onde mantém diálogo e laços de amizade. O ministro Jaques Wagner ficou com a tarefa de reconstruir as pontes entre o governo e o Parlamento, incluindo, nesta missão, a recuperação da própria bancada do PT. À ministra Dilma Rousseff foi atribuída a tarefa de gerenciar o governo, não deixá-lo parar, cobrar ação dos ministros, fazer reuniões de coordenação e cumprir todo um trabalho que o presidente, há mais de um ano, havia transferido ao ex-ministro José Dirceu, sem êxito. E o secretário particular do presidente, Gilberto Carvalho, recebeu a ordem de inverter a agenda, para privilegiar as ações públicas, as inaugurações, os encontros país afora, com Lula na ponta. Encontros com governadores seriam muito bem-vindos, segundo pediu o presidente. No PT, o comando da recuperação ficou com Tarso Genro, o presidente interino, e Ricardo Berzoini, secretário-geral. A informação dos que têm mais acesso ao Palácio é que Tarso está agindo em perfeita sintonia com o presidente Lula. E no Congresso, os líderes do PT assumiram o comando do processo, inclusive da guerra pela reconquista da base aliada, toda ela esfacelada no escândalo do mensalão. Neste exército, atuam Arlindo Chinaglia, que tem a missão mais difícil de tratar com os feridos, Aloizio Mercadante, Fernando Ferro, o líder interino do PT na Câmara, dois petistas das CPIs dos Correios e dois do Mensalão, dois representantes do PCdoB (o ex-ministro Aldo Rebelo e o deputado Renildo Calheiros) e o ex-ministro Eduardo Campos, do PSB, que, passados os funerais do seu avô, Miguel Arraes, integra-se agora ao grupo. Os três batalhões fazem avaliações conjuntas da crise, orientam as ações dos partidos da base, acompanham o desenrolar dos trabalhos na Comissão de Ética, na Corregedoria e na Polícia Federal. Um trabalho que efetivamente já começou, pelo menos em algumas de suas formas, mas que, passadas as tormentas que ainda se esperam para esta semana, poderá ser intensificado de forma mais completa. "Não temos ainda condições de estabelecer uma estratégia porque não sabemos o alcance do dano, mas hoje achamos que já saiu quase tudo que havia para sair, a situação é menos problemática, já se passaram quase 90 dias", comenta uma das testemunhas desta ação. O governo não sabe o alcance do dano porque, segundo entendem os principais combatentes da crise, ninguém conta tudo. Silvio Pereira, por exemplo, disse que nada tinha a temer e não avisou aos estrategistas sobre o Jipe recebido como presente; José Genoino relatou sobre um dos contratos do PT e não sobre os outros dois; Delúbio escondeu tudo; José Dirceu fez um depoimento considerado bom mas apenas até certa altura, exatamente quando apareceu a vinculação com a Portugal Telecom. O depoimento do publicitário Duda Mendonça foi um teste para esta organização, que dava seus primeiros passos, e que falhou nesta oportunidade. O governo sabia que Duda havia conversado com o PFL da Bahia no dia anterior, e ainda estava magoado com a falta de apoio de que se achava credor no episódio da briga de galo. Mas foi tranqüilizado pela informação, que também circulou entre grupos, de que ele defenderia Lula, e o depoimento não seria ruim para o governo. Foi péssimo. Estas atuações jogavam, no dia seguinte aos acontecimentos, qualquer estratégia por terra. Lula começou também a furar o sistema montado. Passou a fazer reuniões isoladas, com um ou outro ministro, e não com o grupo do Palácio, isolando-se muito. Chinaglia passou a sofrer constrangimentos nas suas tentativas de remontagem da base aliada. Ouviu ameaças, chantagens e advertências. Por exemplo: as CPIs e a Comissão de Ética têm participação do PT. Um dos maiores envolvidos no escândalo, responsável por um dos saques mais altos do esquema de Marcos Valério - Delúbio Soares -, foi a Arlindo Chinaglia com um recado muito claro: "Se o PT continuar me pressionando, vou dizer que conheci o Valério no gabinete de Lula". Todos sabem que o publicitário mineiro não entrou neste recinto, mas a esta altura das denúncias, esses parceiros do PT acham que está valendo tudo. Os partidos aliados - PP, PTB, PL e até PMDB, que também têm envolvidos no escândalo - desconfiam do PT. O governo tem informações de que, na concepção desses partidos, o PT quer se salvar e jogar a base para dentro do fogo. Para eles, o melhor é o PT se afundar sozinho. O mais incrível é que estas ameaças intimidam, surtem efeito, o governo teme que se traduzam em aliança com a oposição, que se transfiram, se aliem ao PFL para lutar pelo impeachment do presidente Lula. Chinaglia reúne-se com os líderes desses partidos, os acalma, cuida dos encontros do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, com o presidente Lula. Ou seja, prepara o terreno para que Jaques Wagner possa entrar no Congresso e tentar restabelecer as relações entre o governo e a base. Por enquanto, o ministro, por ser petista, só está tendo condições de recomeçar o diálogo com a bancada do seu partido. O PT precisa passar por um processo de reconstituição de suas lideranças, teve líderes e ex-líderes mortalmente feridos e precisa ficar, com urgência, de pé, para se conduzir em 7 investigações. Para quem não queria nenhuma CPI, o partido tem agora pela frente a dos Correios, a do Mensalão, a dos Bingos, a Comissão de Ética, a Corregedoria, a Polícia Federal, e o inquérito interno do partido. Este, tendo que estar mais ou menos encaminhado até 23 de setembro, quando se realiza o Processo Eleitoral Direto (PED), quando se espera que um novo grupo, mais descompromissado, leve adiante os processos, às últimas consequências. Há duas ou três semanas, quando decidiu organizar o governo para enfrentar a crise, o presidente Lula disse aos primeiros que chamou para conversar que havia chegado ao seu limite: "A situação está insuportável". O presidente pediu a todos para retomarem a normalidade. A normalidade é: "O governo, governa; o Congresso, legisla". Desde então, é o que se tem tentando fazer. O presidente deu instruções diretas ao ministro Palocci para que se mantenha fora da crise e siga conduzindo a economia. A ministra Dilma está pegando as rédeas administrativas do governo para fazer os projetos acontecerem, embora não tenha abandonado seu gosto pela política e dê palpites na condução da reação à crise. Cada um vai desempenhando seu papel enquanto o presidente tenta, ele próprio, se reerguer. Sim, porque é evidente que Lula não está cem porcento, dizem os que o acompanham de muito perto. Ele oscila muito entre a depressão com a crise e o sentimento de poder tudo. Ora lhe vem a sensação de que foi injustiçado e traído, justamente pelas pessoas em quem mais confiava, seu mais queridos amigos, ao lado de quem lutou em muitas campanhas. Aí se queixa muito, reclama e às vezes até chora. Em outros momentos, de euforia, lhe vem a certeza de que vai mostrar a todos quem ele é. É o momento do "não vou entregar a rapadura" e do "vão ter que me engolir". Pede, então, que o coloquem com o povo.