Título: O câmbio que tudo remedia
Autor: Maria Clara R. M
Fonte: Valor Econômico, 18/08/2005, Opinião, p. A11

Seria um exagero dizer que a economia brasileira está hoje total e irremediavelmente pendurada na valorização do real. Mas não é um exagero dizer que o câmbio explica grande parte dos bons resultados colhidos nos principais indicadores econômicos. Não é a primeira vez que isso acontece. Ocorreu nos primeiros anos do Plano Real, quando a política cambial foi, como se sabe, o principal indutor para a estabilização. A história mostrou que o abuso daquela política forçou uma violenta e drástica desvalorização com altos custos econômicos, sociais e políticos. De novo, o real valorizado - nos últimos 12 meses acumulou cerca de 20% de valorização face ao dólar americano - é o principal instrumento a explicar a inflação baixa, o reforço nas reservas internacionais e a queda do prêmio de risco Brasil. Às custas, apontam muitos, de altas taxas de juros que afetam em especial os brasileiros de renda mais baixa, obrigados a assumir condições de endividamento absurdamente elevadas. As conseqüências são conhecidas: o mercado se estreita, os investimentos se dão a ritmo moderado e o setor público explode em gastos que se compromete a assumir com ou sem meta de déficit nominal zero. Mas os fatos reiteradamente provam que, ao contrário do que aconteceu nos primeiros anos do real, a valorização cambial parece desta vez desmentir a máxima até então incorporada à retórica generalizada de que só a desvalorização do câmbio é capaz de garantir superávits na balança comercial de países com economias vulneráveis, como é considerado o caso brasileiro. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. As relações comerciais que passaram a ditar o movimento dos mercados mundiais, fruto da distensão simbolizada pela queda do muro de Berlim e pela onda de liberalização que passou a encantar a todos, inclusive os chineses comunistas (a exceção hoje restringe-se apenas à Cuba), introduziram um fato novo no padrão do comércio externo brasileiro. Há muito o mercado interno deixou de ser uma reserva privilegiada para as empresas brasileiras, obrigadas desde o inicio da década de 90 a irem à luta. A China, com sua explosão de consumo de matérias-primas e commodities agrícolas, ajuda obviamente a explicar boa parte da resistência do saldo das exportações à valorização do real. Tanto melhor que assim o seja. O Brasil acaba tirando proveito de uma situação internacional que pode ser temporária, mas que ajuda a gerar renda interna e a manter a inflação estabilizada por um tempo, além de contribuir para o acúmulo de reservas internacionais e para a queda do risco país. Este tem se mantido abaixo de 500 pontos, em níveis próximos aos verificados nos primeiros meses de 1997, considerados a melhor fase do real, antes da eclosão das crises cambiais que assolaram o Sudeste da Ásia e a Rússia naquele ano, e o próprio Brasil no ano seguinte.

O paradoxo do governo Lula é amargar uma crise política no momento em que poderia estar colhendo significativos resultados na área econômica

A questão que alguns analistas têm colocado é justamente a de que a taxa de juros de curto prazo - a taxa Selic, do Banco Central - estaria demasiadamente elevada mesmo para quem defende que seja esse o padrão necessário, como contrapartida, para um real valorizado. O exportador, sabe-se, ganha quando aplica internamente os reais (que obtém com a troca cambial), recebendo por isso taxas de juros bem mais elevadas do que as taxas que paga nas operações de financiamento externo. Há fortes suspeitas de que um novo paradigma tenha passado a nortear as exportações brasileiras. Estas estariam hoje mais focadas na necessidade de garantir mercados e na busca de novos compradores no exterior do que propriamente no nível da taxa de câmbio como fator determinante. Neste caso, o real se manteria valorizado ainda que as taxas de juros internas baixassem de patamar. Até que ponto, ninguém sabe. É algo que precisa ser testado na prática mas, para ser sincero, o momento político que se vive no país não é o mais apropriado para isso. A intricada relação entre câmbio, juros, reservas e risco-país continua ocupando a cabeça dos economistas brasileiros. O tema foi abordado por Diogo Guillén e Thomas Yen Hon Wu na última edição da Carta Galanto. Partindo da definição de que se pratica no Brasil um regime de flutuação cambial suja - o câmbio flutua, mas está sujeito a intervenções por parte do Banco Central - a dupla tentou medir para que nível caminhariam as reservas internacionais, dada a conjugação de diferencial de taxa de juros (interna versus externa), de taxa de câmbio e de prêmio de risco verificada nos últimos cinco anos e meio, desde janeiro de 2000. Observaram, por exemplo, que no segundo semestre de 2002, quando o prêmio de risco do país atingiu nível recorde de alta, o Brasil teria ficado a zero no seu estoque de reservas internacionais se os juros não tivessem sido ampliados e se o real não tivesse se depreciado em larga escala. Guillén e Wu atestam que para cada 100 pontos de aumento no prêmio de risco do país o valor de equilíbrio das reservas internacionais - ou seja, o montante pelo qual as reservas são afetadas tendo em vista o equilíbrio com o novo patamar de risco - sofre queda de US$ 5 bilhões. Para cada 1% de depreciação do real, as reservas internacionais caem cerca de US$ 240 milhões, enquanto que cada aumento de 1% no diferencial de juros (interno versus externo) tem o efeito de recuperar o nível das reservas em US$ 5 bilhões. Decorre daquele exercício a conclusão de que uma queda nos juros sem que isso afete o nível das reservas internacionais só seria possível em um cenário de câmbio mais apreciado e de redução no prêmio de risco do país. Seria a situação hoje, quando se olha exclusivamente para os indicadores econômicos, abstraindo-se os efeitos danosos sobre as expectativas futuras que as complicações políticas possam vir a ter sobre a taxa de câmbio e o nível das reservas. Esse é, talvez, o maior paradoxo do governo Lula na fase atual: estar envolvido em uma das maiores crises políticas dos últimos anos justo no momento em que poderia estar usufruindo, para proveito futuro, dos significativos resultados da área econômica.