Título: Efeito multiplicador
Autor: Eduardo Belo
Fonte: Valor Econômico, 28/10/2004, Crédito, p. F1

Bancos se mostram cada vez mais interessados em financiar o consumo e o crédito à pessoa física deve crescer até 35% este ano

No país em que o setor financeiro exibe lucro recorde a cada balanço, emprestar dinheiro à pessoa física sempre foi o primo pobre do negócio bancário. Um histórico de inflação sem controle, renda minguada, estagnação econômica e muitas incertezas afastou os grandes bancos desse jogo. Agora, tudo mudou. Bem, quase tudo. Ainda restam incertezas, a renda segue anêmica, mas o crescimento econômico já deu algum sinal de vida, e a inflação encontra-se sob controle há dez anos - até porque o Banco Central não perde oportunidade de reafirmar seu rigoroso zelo para com ela. O cenário melhorou. Os bancos descobriram o consumidor e estão emprestando mais para essa parcela do público. O número que talvez melhor ilustre a situação seja a participação do crédito à pessoa física no Produto Interno Bruto (PIB). Nos últimos 18 meses encerrados em setembro, a participação do crédito total no PIB aumentou 12% (pelo critério de produto trimestral). Só o crédito ao consumidor cresceu 29% no período. A expectativa do mercado para este ano é de um crescimento entre 30% e 35% nos empréstimos à pessoa física. O crédito total pode crescer entre 20% e 25%. Estabilidade, ligeira melhoria nos níveis de emprego - embora sem recuperação de renda - mais a retração dos juros do ano passado para cá abriram as portas dos bancos para o consumidor. A existência de crédito um pouco mais farto este ano é apontada por analistas do setor financeiro e do varejo como a mola propulsora do setor de eletroeletrônicos e eletrodomésticos. Este ano, as vendas da indústria desses dois segmentos cresceram 34%. Só na área de imagem e som, o aumento é de 50%. A se manter um cenário de crescimento econômico, a perspectiva é o volume de crédito continuar em expansão, mesmo com um ou outro momento de tensão proporcionado pelos eventuais ajustes da taxa básica de juros (Selic), favorecendo as vendas de bens de consumo duráveis e semiduráveis. No segundo maior banco do país, o Bradesco, a expectativa é de um aumento de 25% nos próximos 12 meses, calcula Paulo Isola, diretor para área de empréstimos do Bradesco e de seu controlado banco Finasa. A instituição administra uma carteira de R$ 15 bilhões em crédito ao consumidor mais R$ 1 bilhão em crédito consignado - o chamado empréstimo com desconto em folha de pagamento -, do qual boa parte é destinada a compras de bens duráveis ou reformas e construção de imóveis, estima o executivo. Isola acredita que, mantidas as condições para o crescimento do crédito à pessoa física, o segmento poderá mais que dobrar de tamanho e passar dos atuais 21,7% de todos os empréstimos efetuados hoje no país para 50% ou mais dentro de cinco anos. De acordo com o diretor, o financiamento ao consumo detém uma fatia de 35% de todo o crédito concedido pelo Bradesco. Para o Itaú, líder do ranking doméstico, o crescimento deste ano decorre de uma conjuntura favorável, aliada à demanda historicamente reprimida no crédito à pessoa física. Nessa área, o banco espera crescer 34% em 2004. Segundo o balanço semestral da instituição, o Itaú mantinha em junho deste ano uma carteira de empréstimos de R$ 5,8 bilhões a pessoas físicas. O banco destina a esse público apenas 12% de seu volume total de empréstimos concedidos. De modo geral, a participação dos bancos nesse segmento ainda é pequena. O crédito formal à pessoa física representa somente 5,7% do PIB no Brasil. Na Europa, é pelo menos 30%. O motivo é simples: enquanto os países desenvolvidos têm uma cultura de financiar o crescimento, no Brasil o sistema financeiro serve mais para financiar o Estado, atividade mais bem remunerada e de menor risco. Além disso, crédito nunca foi um estímulo de vendas por aqui. Isso fez com que o financiamento na ponta do consumo fosse deixado um pouco de lado pelos bancos, argumenta Alexandre Nunes, sócio da consultoria de Varejo Bealmaker e professor do Brazilian Business School. As instituições financeiras só se interessaram de fato por essa modalidade de crédito nos últimos cinco anos ou seis anos, quando perceberam que essa operação poderia ter um bom volume e se tornar viável. A melhoria do cenário econômico acentuou essa tendência do ano passado para cá. Durante muito tempo, financiar o consumo sempre foi atribuição do próprio varejo. Tanto que os bancos só agora estão adquirindo o know-how do negócio. Sem contar com uma carteira específica para isso no sistema financeiro e precisando fazer girar as mercadorias das lojas, os grandes magazines desenvolveram eles mesmos um modelo de financiamento que atendesse a essa necessidade. Muitas vezes, o financiamento era bancado pela própria loja, sem intermediários. "Esse foi o grande segredo do sucesso de redes como a Casas Bahia", afirma Alberto Serrentino, consultor para a área de varejo da Gouvêa de Souza & MD Desenvolvimento Empresarial. As características desse modelo comercial, em que muitas vezes a operação de crédito é mais rentável para a loja que a própria venda fez do CDC (crédito direto ao consumidor) "um negócio próprio, quase que uma invenção brasileira", completa Alexandre Nunes. Sempre prontos a reduzir os riscos ao mínimo, a principal estratégia dos bancos para entrar nesse segmento tem sido evitar a porta da frente. A maioria das grandes instituições comprou ou se associou a uma financeira já estabelecida. Com isso, os bancos carregaram não só a carteira de clientes, mas também toda a tecnologia que envolve a concessão de crédito, em um mercado em que as garantias - afora os financiamentos de veículos - são muito tênues. Até hoje, os grandes bancos sempre tiveram seus empréstimos pessoais restritos aos correntistas. Ao se associarem a uma financeira, conseguem baratear o custo de operação e, ao mesmo tempo, ampliar o leque de ação ao agregar clientes potenciais com os quais não têm nenhum relacionamento anterior. Muitos dos novos clientes nem mesmo conta bancária têm. Alguns, sequer dispõe de uma renda constante.

Financeira não é um lugar em que se toma dinheiro emprestado, mas sim onde os sonhos são concretizados"

Também é possível separar as operações por sua natureza, de maior ou menor valor para a instituição. Os bancos preferem atuar no financiamento de automóveis, em que as taxas de juro são menores - mas possui garantias reais, facilmente executáveis e com boa liquidez - e deixar para as financeiras o crédito para outros bens duráveis, em geral de valor mais baixo. Enquanto o tíquete médio de uma operação de crédito para automóveis é de R$ 10 mil, as vendas financiadas de serviços e outros bens de consumo - especialmente eletrodomésticos e móveis - oscilam na casa dos R$ 500. A faixa de renda também varia. O comprador de veículos tem renda média entre R$ 1.500 e R$ 3 mil. Os demais consumidores, têm renda de até R$ 1.500. "A melhor estratégia foi segmentar o público", define o diretor do Bradesco Paulo Isola. Ao abraçar essa estratégia, os bancos puxaram para sua carteira de clientes o consumidor das classes B, C, D e, em menor escala, até uma parcela da classe E, a de mais baixa renda, diz o executivo. Há um ano, o Bradesco comprou o banco Zogbi para atuar nessa frente. Apesar de ter nome de banco, o Zogbi atua no modelo tradicional das financeiras. É o que o Itaú está fazendo com sua recém-constituída financeira Taií. Com 11 lojas implantadas desde junho, a Taií oferece crédito de R$ 260 a R$ 800 para as faixas de renda mais baixa. É parte da estratégia mostrar ao público que "financeira não é um lugar em que se toma dinheiro emprestado, mas sim onde sonhos são concretizados", afirma Dilson Ribeiro, diretor da empresa. Ao correntista, o Itaú oferece suas linhas de crédito tradicionais via agência. Estratégica, a segmentação extrema levou o banco a criar uma associação com o grupo Pão de Açúcar. A empresa Nova Financeira uniu o líder do sistema bancário e a principal rede de supermercado do país numa parceria em que o Pão de Açúcar aumenta o giro de seus produtos sem ter de arcar com a intermediação financeira. O modelo repete a fórmula consagrada pelo banco Ibi e a rede de lojas de roupas C&A. Além disso, o Itaú em fevereiro de 2003 adquiriu a operação da Fináustria, especializada no crédito para automóveis. Um mês depois, arrematou o Banco Fiat, que pertencia à montadora italiana. Nem mesmo as instituições públicas querem ficar de fora dessa onda. O Banco do Brasil adotou uma postura agressiva e oferece empréstimos a seus correntistas, nos terminais de auto-atendimento. A linha de crédito, destinado a clientes com renda mensal de até R$ 1 mil foi lançada em junho e já contabiliza 300 mil empréstimos no valor total de R$ 146 milhões. A expectativa do banco é que o volume de crédito concedido chegue a R$ 300 milhões até dezembro. Os empréstimos variam de R$ 100 a R$ 600. Para explorar o segmento de renda ainda mais baixa, o BB criou o Banco Popular (BPB). Com quatro meses de vida, a instituição conta com 220 mil correntistas. Faz parte da estratégia do BPB firmar parcerias com redes de varejo para oferecer crédito na ponta do consumo. O banco acertou os ponteiros nesse sentido com a Casas Bahia, maior rede de magazines do país, e, num filão ainda pouco explorado, com as farmácias Redemed, com cerca de 1.600 lojas espalhadas pelo país. Na linha de oferecer produtos segmentados, mas visando um público mais abonado e mais preocupado com questões que vão além do consumo puro e simples, o ABN Amro Real tem oferecido linhas de crédito específicas para produtos de consumo ligados à preservação ambiental. Além de suas tradicionais linhas de financiamento, o banco oferece aos correntistas a possibilidade de converter veículos para gás natural ou instalar aquecedores solares em casa. A instituição aposta na idéia de vender qualidade de vida a prazo. O que atrai os bancos para o chamado "crédito popular" agora é alta rentabilidade e o desejo da baixa renda de consumir, diz Alberto Serrentino. E estão se valendo do know-how das financeiras. Com os dez anos de estabilidade, essas empresas aprenderam como fazer a análise de crédito consistente da baixa renda e driblar a inadimplência - que infernizou o varejo em 1996 e 1997, depois da primeira onda de vendas a crédito do Plano Real. Como no Brasil o crédito viabiliza a demanda nos segmentos de renda menor, um momento como este, de crescimento econômico, representa o cenário ideal para quem quer se consolidar no negócio. A manutenção do modelo, porém, esbarra na conjuntura, segundo o consultor. Até agora, a economia tem crescido com base no agronegócio e nas exportações. Se renda e emprego não melhorarem significativamente a ponto de impulsionar o consumo, esse segmento de crédito tende a minguar de novo, diz. Renda é fator decisivo na visão de Alexandre Nunes. Segundo ele, a renda média do brasileiro não comporta nem poupança nem consumo. O modelo de crédito que se criou no país casa com essa característica. Os juros explosivos não incomodam. O consumidor quer saber se a prestação cabe no bolso. "De classe média para baixo, a população nem sabe fazer a conta dos juros", diz. "Se souber, não faz, para não mudar seu desejo de consumo, porque, se fizesse, não aceitaria um sistema desses." Para o consultor, esse tipo de negócio não teria sustentação em outro patamar de taxa de juros. "Ele só se sustenta pelo descolamento que existe entre o juro na ponta do consumo e a taxa básica", afirma. Se o juro real fosse mais baixo, os bancos precisariam de uma escala muito maior para tornar o negócio lucrativo, mas em compensação, a venda a crédito seria muito maior no país, arremata.