Título: Islamismo desafia muçulmanos
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 19/08/2005, Opinião, p. A13

É absurdo afirmar que os que agem em nome do Islã nada têm a ver com os que se mantêm fiéis a ele

Será que a ideologia que move o islamismo tem muita relação, se é que tem alguma, com o Islã ou com a vasta maioria dos muçulmanos fiéis? Ou será que, como sugeriu o lorde Desai, ele não tem mais relevância em relação ao Islã que o catolicismo tem em relação ao IRA? A resposta a essa última proposição é um vigoroso "não". Lorde Desai sugere, corretamente, que o islamismo contemporâneo é uma ideologia revolucionária moderna. Ele é, assim, social e psicologicamente semelhante ao comunismo. Ele propõe, como fez o comunismo, a tese de um paraíso prometido - neste caso, um califado restaurado, em vez de um idílio socialista. Ele sugere, assim como fez o comunismo, que esse paraíso poderia assumir a forma de uma comunidade perfeita - neste caso, para fiéis, não para operários. Ele identifica, como fez o comunismo, um inimigo contra o qual a luta deve ser travada - neste caso, o Ocidente e seus governos muçulmanos satélites, no lugar da burguesia. Ele argumenta que uma vanguarda dos esclarecidos - neste caso, os jihadis, em vez do partido comunista - tem o direito de impor a terra prometida ao resto da humanidade, a despeito dos desejos dela ou dos custos envolvidos. Trata-se, portanto, de uma ideologia moderna, não de uma fé tradicional. O islamismo oferece aos seus adeptos uma sensação de pertencer, uma sensação de superioridade e uma sensação de propósito. Ele é, conseqüentemente, particularmente dotado de poder de atração para alguns muçulmanos de segunda ou terceira geração no Ocidente. Tudo isso aparenta ser verdade. Mas levemos a analogia um pouco adiante. O marxismo-leninismo foi uma forma revolucionária de socialismo. Ele obrigou os socialistas não-revolucionários a se posicionarem. Eles se cindiram em dois grupos. Os "socialistas democráticos" concordaram com os revolucionários sobre os seus fins, porém discordaram sobre os seus meios. Os "social-democratas" discordaram dos revolucionários tanto nos fins como nos meios. Ambos, porém, decidiram que o compromisso com a democracia, que compartilhavam com liberais e conservadores, era mais importante que o comprometimento com o socialismo, que compartilhavam com os socialistas. Muitos deles se tornaram oponentes ferrenhos desses últimos.

Islamismo é uma ideologia moderna, não uma fé tradicional, dotada de poder de atração para alguns muçulmanos no Ocidente

Agora, consideremos uma segunda analogia - desta vez com a ideologia terrorista do IRA. Os partidários do IRA são católicos, mas sua ideologia é nacionalista e, assim como o IRA provisório, é também marxista. Ele é desprovido de qualquer elemento religioso. Os nacionalistas irlandeses são católicos porque os irlandeses conquistados se ativeram à antiga fé quando ingleses e escoceses adotaram o protestantismo no século XVI. O catolicismo tornou-se a base da sua identidade nacional separada. Portanto, não há nenhum motivo para que a Igreja Católica Romana assuma qualquer responsabilidade pelas doutrinas do IRA, salvo condenar o terrorismo, como sempre tem feito. O desafio representado pelo IRA foi mais dirigido aos irlandeses. No fim, ficou evidente que os moderados na Irlanda e no Reino Unido e uma proporção crescente de pessoas de ascendência irlandesa nos EUA condenaram o terrorismo, assim como os social-democratas estiveram preparados a condenar e combater o comunismo. Agora imaginemos, por outro lado, que houvesse uma rede de terroristas que afirmasse estar lutando pelo retorno da supremacia papal medieval sobre os Estados seculares. Suponhamos que ele reivindicasse a reintrodução do interdito e da inquisição. Imaginemos, também, que ela alegasse que seus atentados terroristas se justificavam em função da obrigação de salvar almas da condenação eterna. Um grupo nesses moldes ofereceria um paralelo à ideologia do jihad, que pleiteia o retorno do califado, apóia a deposição dos governos atuais nos países muçulmanos, censura muitos muçulmanos por serem descrentes, reivindica a supremacia da lei da Sharia e, na sua manifestação mais extremada, exige a disseminação compulsória do Islã pelo mundo. Se o movimento terrorista que descrevi se formasse, os católicos e a Igreja teriam de decidir se concordam com os fins, mas condenam os meios, ou se condenam os fins e os meios. Da mesma maneira, os muçulmanos precisam decidir onde eles se posicionam em relação ao islamismo, na teoria e na prática. Trata-se de uma interpretação da sua fé por parte de pessoas que alegam falar e agir em seu nome. Se a ideologia não é representativa, os muçulmanos precisam lutar para assegurar o seu fracasso. Exatamente da mesma forma, os socialistas precisaram decidir em que lugar estavam em relação ao comunismo e os irlandeses tiveram de decidir onde estavam em relação ao IRA. Será absurdo afirmar, portanto, que os que alegam falar e agir em nome do Islã nada têm a ver com os que se mantêm fiéis a ele. Se quisermos derrotá-los, será necessário receber a ajuda determinada destes fiéis.