Título: Mágica para a paz
Autor: Craveiro,Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 18/03/2010, Mundo, p. 32

ORIENTE MÉDIO

Em visita inédita a Ramallah, o presidente Lula diz que a tensão entre Estados Unidos e Israel é ingrediente capaz de originar acordo definitivo

A visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Ramallah (Cisjordânia), sede da Autoridade Palestina, ficará marcada por dois atos obscuros e polêmicos. Além de ter depositado uma coroa de flores no túmulo do ex-líder palestino Yasser Arafat, Lula comentou o atrito público entre os governos norte-americano e israelense, embora o presidente Barack Obama tenha desmentido uma crise entre os dois aliados. ¿O que parecia impossível aconteceu: os Estados Unidos tendo divergência com Israel. Isso era uma coisa praticamente impossível e, quem sabe, essa divergência era a coisa mágica que faltava para que se chegasse ao acordo (de paz)¿, declarou o brasileiro.

Ao lado do colega Mahmud Abbas, Lula voltou a defender um Estado palestino. ¿Eu sonho com uma Palestina independente e livre, vivendo em paz no Oriente Médio. Acredito que os palestinos e os israelenses vão partilhar a terra de seus antepassados¿, acrescentou. De acordo com ele, esse sonho só pode ser alcançado se houver concessões por parte do premiê Benjamin Netanyahu. ¿O mais importante é congelar os assentamentos em todas as áreas palestinas, incluindo em Jerusalém¿, disse Lula. O brasileiro admitiu a possibilidade de se reunir com representantes do movimento fundamentalista islâmico Hamas. ¿O Brasil está preparado para falar com todo mundo. Todas as partes envolvidas devem ser escutadas¿, opinou. Ele exortou Israel a suspender o cerco a Gaza e a derrubar o muro da Cisjordânia ¿ teoricamente erguido para impedir a infiltração de militantes palestinos em território israelense. E pediu ao partido Fatah e ao Hamas para encerrarem as divergências.

As declarações de Lula coincidiram com o agravamento da crise israelo-americana. A ¿mágica¿ à qual o líder brasileiro se referiu parece estar cada vez mais eficiente. Hagai Ben-Artzi, cunhado de Netanyahu, concedeu entrevista à Rádio do Exército de Israel e acusou o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de antissemita. ¿Não é que Obama não goste de Bibi¿, disse, citando o apelido do premiê. ¿É que ele não gosta da nação de Israel.¿ Segundo Ben-Artzi, a existência de um presidente anti-semita nos EUA é um teste para os judeus. Em meio à saia justa, o primeiro-ministro viu-se obrigado a intervir. Ele garantiu ter apreço pelo comprometimento de Obama com a segurança de Israel e afirmou ¿discordar completamente¿ do cunhado.

Outro golpe nas relações entre EUA e Israel foi desferido pelo chanceler israelense, Avigdor Lieberman ¿ o mesmo que boicotou o discurso de Lula na Knesset, em Jerusalém, na segunda-feira. Em coletiva de imprensa com Catherine Ashton, alta representante para assuntos externos da União Europeia, Lieberman avisou: ¿A demanda para proibir os judeus de comprar ou construir em Jerusalém Oriental é irracional¿.

Herói Em seu terceiro dia de compromissos oficiais no Oriente Médio, Lula também inaugurou a Rua Brasil, em Ramallah. ¿Estou feliz de que a rua do Brasil fique diante do mausoléu de Arafat, isso demonstra o carinho que o povo palestino sente pelo povo brasileiro¿, declarou Lula. Às 13h (8h em Brasília), Assad Hiijah, 29 anos, passou pelo local, pouco antes da solenidade. ¿Vi bandeiras do Brasil e da Autoridade Palestina¿, contou. O palestino emocionou-se com o fato de Lula ter visitado o túmulo de Arafat, usando o tradicional keffiyeh (lenço palestino) sobre os ombros. ¿Não posso descrever o que sinto. Ações como essas não são feitas por qualquer chefe de Estado. Lula é um herói¿, comemorou, em entrevista pela internet. ¿Todos os presidentes querem que Israel estreja feliz com eles. E Israel insiste que eles apoiem tudo o que fizer, como assassinatos e construção de assentamentos¿, acrescentou.

Por telefone, Atef Ibrahim Mohammad Adwan, deputado e líder do Hamas, afirmou ao Correio crer que a tensão entre americanos e israelenses realmente pode ser benéfica. ¿A crise vai encorajar os EUA a entenderem que as políticas de Israel tentam minar a paz, por meio dos assentamentos judaicos¿, comentou. O homem acusado de terrorismo por Jerusalém elogiou a postura de Lula(1). ¿Nós, do Hamas, saudamos as declarações do presidente Lula, cuja visita é algo bom para o nosso bem-estar e pode nos ajudar a atingirmos as metas para alcançarmos a paz¿, disse, acrescentando que os assentamentos judaicos são ¿um empecilho à paz¿. ¿Esperamos que essas declarações não fiquem apenas na retórica, mas ajudem a convencer os EUA e a União Europeia da necessidade de pôr fim à ocupação israelense¿, concluiu.

Jordânia Na tarde de ontem, Lula viajou para Amã, na Jordânia, onde foi recebido, a portas fechadas, pelo rei Abdullah II, que acusou Israel de ¿roubar Jerusalém¿. Ambos examinaram meios de promover avanços no processo de paz e de desenvolver relações econômicas bilaterais, especialmente nos campos da energia e da tecnologia. Hoje, Lula deverá visitar o famoso sítio arqueológico de Petra (sul), antes de voltar para Brasília.

1 - Cotado para o topo da ONU O porta-voz da Presidência palestina, Mohamed Edwan, afirmou ontem esperar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja o próximo secretário-geral da Organização das Nações Unidas, cargo atualmente ocupado pelo sul-coreano Ban Ki-moon. ¿Achamos que Lula poderia ser um ótimo secretário-geral da ONU, pois é um homem de paz e de diálogo e sabe negociar de maneira inteligente e admirável¿, disse Edwan à emissora britânica BBC, em Ramallah.

Assinatura de documentos Os governos brasileiro e palestino assinaram dois acordos (de cooperação técnica e cultural) e três memorandos, nas áreas de saúde, esporte e desenvolvimento do turismo. O acordo de cooperação técnica terá vigência de cinco anos, com ênfase no desenvolvimento sustentável. O tratado no campo da cultura inclui contatos entre museus e bibliotecas. Na área esportiva, ficou decidido o intercâmbio de atletas e equipes, além de experiências sobre inclusão social.

O Brasil sempre defendeu a paz no Oriente Médio e nunca esteve tão envolvido para conseguir¿

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil

Chamamos os lados a estarem à altura de suas obrigações, para participarmos do diálogo¿

Mahmud Abbas, presidente palestino

Eu acho...

¿Conversar com o presidente Lula seria um grande passo. Lula é uma pessoa muito importante na arena internacional. O fato de ele ter acenado em direção a uma conversa com os líderes do Hamas é um passo o qual saudamos. Nós, líderes do Hamas, levamos em conta que Lula tem prestado grandes serviços ao nosso povo. Lula ajudaria a nós, do Hamas, e ao Fatah a atingirmos bons resultados rumo a uma coalizão¿

Atef Ibrahim Mohammad Adwan, líder do Hamas e deputado palestino

Violência e recuo na Cisjordânia

Horas depois do chamado ¿Dia da Fúria¿, convocado pelo movimento fundamentalista islâmico Hamas, o Exército israelense levantou o cerco à Cisjordânia. Durante uma semana, palestinos foram proibidos de entrar ou sair do território palestino. A medida, no entanto, não suavizou os ânimos da população local, que voltou a entrar em choque com soldados judeus em várias regiões. No posto de controle do campo de refugiados de Qalandiya, que liga Ramallah a Jerusalém, jovens desafiaram os militares com pedras ¿ armas que se tornaram o símbolo das duas intifadas (1987-1993 e 2000-2005). No vilarejo de Beita, perto de Nablus, palestinos usaram barricadas improvisadas para atacar as tropas. Em Hebron, a polícia usou bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes.

Ex-membro da delegação palestina para conversações de paz multilaterais e ex-diretor do Instituto para o Oriente Médio da Universidade de Harvard, o cientista político Bishara Bahbah descarta uma terceira intifada (levante palestino). ¿A onda de violência é uma reação ao anúncio da expansão dos assentamentos e à renovação da sinagoga de Hurva, próximo à Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém Oriental¿, explicou ao Correio, por telefone, de Scottsdale (Arizona, EUA). ¿Eu retornei recentemente da Palestina e presenciei o desespero generalizado da população e o ceticismo em torno do processo de paz¿, acrescentou. Segundo Bishara, a sensação entre os palestinos é de que o governo de Mahmud Abbas está muito enfraquecido e não se interessa mais em negociar a paz.

O especialista, autor de Israel e América Latina: a conexão militar, lembra que o traçado do Muro da Cisjordânia deu lugar a vários assentamentos judaicos. ¿A impressão é de que Israel engoliu vilarejos e cidades palestinas. Há uma tremenda mudança em curso, transformando a Cisjordânia em porção geográfica do Estado de Israel¿, analisou Bahbah. Ele não vê elementos da intifada na atual crise de segurança e acredita que o nível de violência diminuiu drasticamente, em comparação com os incidentes da terça-feira. (RC)