Título: Falta à democracia distribuir renda
Autor: Cynthia Malta
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2004, Política, p. A11

A democracia no Brasil está consolidada, mas é de baixa intensidade, pois não cumpre uma de suas principais funções que é produzir a igualdade entre os cidadãos. E o governo do presidente trabalhista Luiz Inácio Lula da Silva, que herdou o título de país campeão em desigualdade social da América Latina, não pratica uma política capaz de alterar esse quadro. A avaliação é de cientistas políticos que fizeram um balanço ontem dos 20 anos de democracia no Brasil, numa das mesas redondas do 28º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), que termina hoje. "O Brasil vive um paradoxo hoje. Tem um governo trabalhista, que assumiu o poder de maneira progressiva, enraizando suas bases através de líderes locais, e que corresponde ao ápice da democracia de baixa intensidade", diz o cientista político Renato Boschi, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Para ele, o governo Lula não conseguiu implementar uma política de redistribuição de renda. A presença dessa democracia de baixa intensidade, que atinge também os demais países da América Latina, é explicada, em parte, pela adoção de um modelo que reduziu o papel do Estado e abriu espaço para políticas voltadas "à economia de mercado", na qual a fixação, por exemplo, da " taxa de juros fica à cargo dos investidores" e não do governo, observa Boschi. Uma pesquisa recente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), para a qual foram entrevistadas quase 20 mil pessoas em 18 países latino-americanos, mostra que há a percepção de que os processos eleitorais melhoraram, mas que a democracia não produziu efeitos substantivos: não reduziu o desemprego, a pobreza e nem a desigualdade social. Mostrou-se que para 34,6% dos entrevistados, o emprego continua sendo o problema mais importante na região, seguido de desigualdade e pobreza, com 26,3%. Em terceiro e quatro lugares em percentual bem menores, aparecem crimes e tráfico de drogas (11,9%) e corrupção (11,3%). Boschi também nota que em todas as plataformas eleitorais, e foi o caso do Brasil em 2002, o combate ao desemprego é citado como prioritário. Mas o que se viu é seu aumento. A população, ou 64% dos entrevistados pelo Pnud, responde que os candidatos mentem para ganhar eleições. Na maioria dos países, "os pesquisados apontam serem as corporações e os bancos os detentores do poder", observa o cientista político. O cientista político do Iuperj Fabiano Santos concordou com o diagnóstico de Boschi e chamou atenção para a sua tese, a de que "desigualdade afeta a democracia". O Brasil, lembrou é a terceira ou quarta maior democracia do mundo, com um imenso eleitorado. Mas a má distribuição de renda no país tem levado os dois extremos da população, os mais ricos e os mais pobres a minimizarem a importância da democracia. "A classe mais rica, seja o governo que for, sente-se autônoma e a classe mais pobre se sente excluído e prioriza o desenvolvimento econômico em detrimento da democracia", diz Santos. De fato, a pesquisa do Pnud mostra que 44% dos latino-americanos não acreditam que a democracia possa resolver seus problemas e 50,8% consideram o desenvolvimento econômico mais importante do que a democracia. Os cientistas políticos Fernando Limongi, da Universidade de São Paulo (USP) e do Cebrap, e Maria Herminia Tavares de Almeida (USP) observaram que nos últimos anos houve avanços na área social, mas que ainda resta, de fato, implementar uma política de redistribuição de renda. "Não há impedimento, do ponto de vista institucional, para que políticas redistributivas sejam implementadas. O que temos que nos perguntar hoje é se há uma política redistributiva em marcha", disse Limongi. Este certo desencanto em relação ao governo Lula, que tem aparecido nas reuniões dos últimos dois dias da Anpocs, chega atenuado aos olhos do antropólogo americano Charles Briggs, da Universidade da Califórnia/San Diego. O presidente Lula, diz, continua sendo considerado no exterior um político de esquerda, capaz de oferecer uma política econômica alternativa, mas está limitado pelas regras impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio (OMC). Briggs considera que Lula e os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Nestor Kirschner, da Argentina, formam um grupo de políticos de esquerda, que sinceramente querem melhorar a vida de seus eleitores, mas não conseguem. "Eles nos oferecem não a transformação da vida cotidiana, mas uma visão do que poderia ser a democracia".