Título: Agências reguladoras e defesa da concorrência
Autor: Valdomiro José de Almeida
Fonte: Valor Econômico, 26/08/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"No Brasil, o legislador ao criar cada agência não adotou uma abordagem sistemática da aplicação da lei de defesa da concorrência"

A marca das reformas estruturais dos últimos dez anos no Brasil foi a introdução de competição nos setores de eletricidade, telecomunicações, petróleo e gás, portos e transportes, em busca de eficiência nos mercados e de melhoria no bem-estar social. O campo de aplicação da Lei de Defesa da Concorrência - Lei nº 8.884/94 - foi, na prática, ampliado, e a questão da interface entre reguladores e autoridades antitrustes tem, cada vez mais, despertado o interesse de observadores e especialistas em governo e políticas públicas. Na verdade, fala-se mesmo da necessidade de interação entre esses dois tipos de entes estatais, em razão da crescente convergência entre as áreas de defesa da concorrência e regulação, o que torna mais complexa a tarefa de delimitação de fronteira entre as duas. A questão é mais do que pertinente e oportuna por dois motivos. Primeiro, pela necessidade de buscar coerência das políticas regulatórias setoriais com a política antitruste mais geral, até porque há já sinais claros de que as nossas autoridades de concorrência e reguladoras, apesar de progressos, não têm rotinas de cooperação. Um segundo motivo é que o governo federal acaba de propor ao Congresso Nacional um redesenho do modelo de agências reguladoras, particularmente em seu relacionamento com outras agências e órgãos do governo (PL nº 3.337/2004) e discute, também, propor ao Congresso Nacional alterações na Lei nº 8.884/94. Nessas propostas o governo altera o papel dos órgãos antitruste e das agências reguladoras na política de defesa da concorrência nos setores regulados e estabelece nova forma de articulação entre essas autoridades. A experiência nos diversos países mostra que há dois modelos básicos para viabilizar a interface antitruste/regulação: um deles é a reunião das funções de regulação e de defesa da concorrência em uma única agência, como é o caso da Austrália; outro modelo é o da separação das instituições encarregadas dessas diferentes competências, como tradicionalmente ocorre nos EUA e, particularmente, no Brasil. Neste caso, há, também, duas alternativas possíveis que vão conformar diferentes formas de articulação institucional. Uma delas é a de competências concorrentes em que tanto as autoridades de defesa da concorrência quanto as autoridades regulatórias têm competência para aplicar sanções antitrustes, bem como para estabelecer normas de regulação econômica. Outra alternativa é a de competências complementares em que as agências reguladoras cuidam exclusivamente das tarefas de regulação técnica e econômica, e a autoridade de concorrência aplica a legislação antitruste. O problema que surge com a separação é, como já dito, a necessidade de efetiva coordenação na implementação das políticas regulatórias e antitruste. A cooperação e a coordenação entre os órgãos de defesa da concorrência e as agências reguladoras, nesse caso, são vitais para evitar inconsistências na implementação das respectivas políticas. Nos arranjos dos diversos países não há os modelos puros, mas variadas combinações de divisão de competências com responsabilidades recíprocas que levam a essa coordenação. O importante, como sugere o Banco Mundial, é que ambos os tipos de entes sejam envolvidos na revisão dos acordos e nos atos de concentração ou condutas anticompetitivas nos setores que são regulados.

As propostas de revisão do modelo, endossadas pelo governo, instituem um sistema único de competências

A escolha de uma ou outra configuração institucional não é trivial tendo em vista que cada uma apresenta vantagens e desvantagens, dependendo de conjunturas e situações específicas. Os fatores a serem considerados são a flexibilidade institucional, a eficiência operacional, e a minimização do conflito de competências e do risco de captura. Se o modelo de competências concorrentes possibilita maior flexibilidade institucional, o modelo de competências complementares apresenta menor potencial de conflito de jurisdição, uma vez que os papéis de cada órgão não se superpõem. No Brasil, o legislador ao criar cada agência reguladora não adotou uma abordagem sistemática da aplicação da lei de defesa da concorrência nos setores regulados. No caso da Aneel, o modelo é o de competências concorrentes, uma vez que a agência tem a atribuição de zelar pelo cumprimento daquela lei, articulando-se com a Secretaria de Direito Econômico (SDE) - artigo 3º, inciso VIII e § único da Lei nº 9.427/96. O mesmo se dá com a Anatel, com a ressalva de que, neste caso, a Lei nº 9.472/97 mantém com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) o papel judicante em matéria de concorrência. Com as demais agências, as competências são complementares, tendo estas a obrigação de comunicar aos órgãos de concorrência fatos que possam configurar infração da ordem econômica. As propostas de revisão do modelo endossadas pelo governo alteram a legislação vigente para instituir um sistema único de competências complementares para todas as agências, retirando da Aneel e da Anatel a atribuição concomitante com os órgãos antitruste de zelar pelo cumprimento da Lei 8.884/94 em seus respectivos setores. O PL 3.337/04 suplanta a própria Lei 8.884/94 definindo que os órgãos de defesa da concorrência têm a exclusividade pela aplicação dessa Lei. Pelo projeto de lei, as agências deixam de zelar pela defesa da concorrência nos setores sob regulação, apenas manifestando-se quando solicitadas. Sem dúvida, o novo desenho não contribui para aumentar o grau de cooperação entre as agências e os órgãos do sistema de defesa da concorrência. Ao contrário, considerando as próprias deficiências desse sistema, o novo arranjo agrava a desarticulação, com a revogação dos mecanismos jurídicos que tornam as agências reguladoras coadjuvantes ativas na proteção à concorrência nos setores regulados.