Título: O equilíbrio dos contratos financeiros no Plano Real
Autor: Edmar Lisboa Bacha
Fonte: Valor Econômico, 29/08/2005, Opinião, p. A10

Com regras de conversão justas, reforma monetária que deteve inflação foi bem-sucedida

Com um atraso de dez anos, chegam aos tribunais superiores as demandas de credores contra as regras de conversão dos contratos financeiros no Plano Real. Tais demandas são injustificadas. Mas como podem custar, se atendidas, bilhões de reais aos cofres públicos, vale a pena explicar novamente os critérios de conversão de valores utilizados no Plano Real. Os economistas usam a expressão "neutralidade distributiva"; os juristas, "equilíbrio econômico-financeiro dos contratos". Em qualquer denominação, o princípio básico para a conversão dos valores contratados, quando da introdução do real em 1 de julho de 1994, foi o de manter na nova moeda o mesmo poder de compra observado pelos contratos na antiga. Isso valeu tanto para salários, como para preços administrados e contratos financeiros. Interessa-nos aqui explicar o processo de conversão dos contratos. Para isso, vamos imaginar que um investidor tivesse adquirido em 1 de junho de 1994 um título do Tesouro Nacional no valor de 1 bilhão de cruzeiros reais, para resgate em 1 de agosto de 1994. Para simplificar, vamos supor que, afora juros, esse título incorporasse correção monetária mensal igual à variação do índice de preços naquele mês. São duas as correções mensais previstas no contrato, uma devida em 1 de julho, outra em 1 de agosto. A primeira correção refere-se à inflação observada em junho. A segunda, à de julho. O problema é que em 1 de julho desaparece o cruzeiro real e entra em vigor o real. Como converter o valor desse contrato, a ser liquidado em 1 de agosto, de cruzeiros reais para reais? A resposta seria simples se tivéssemos índices mensais de preços exatos, começando no dia 1 de cada mês. Tais índices mostrariam uma inflação muito elevada em junho (último mês de vigência do cruzeiro real), em torno de 45%, e uma inflação muito baixa em julho (primeiro mês do real), em torno de 5% (em valores arredondados para facilitar os cálculos; ver tabela para os valores efetivamente calculados pelos diversos índices de preços). Bastaria então tomar o 1 bilhão de cruzeiros reais aplicado em 1 de junho e multiplicá-lo por 1,45 para obter o valor corrigido em 1 de julho, em cruzeiros reais. Em seguida, converter esse valor em reais, dividindo-o por 2.750. Finalmente, multiplicar o resultado por 1,05 para obter o valor em reais devido em 1 de agosto. O resultado é R$ 553.636 [(1.000.000.000x1,45/2.750)x1,05] valor que asseguraria o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Infelizmente, os índices de preços não têm essa perfeição. Na verdade, medem a inflação com uma grande defasagem. Em particular, o IGP-M da Fundação Getúlio Vargas (FGV), referente a um dado mês, mede a inflação observada não no mês "cheio", mas a apurada entre o dia 20 do mês anterior e o dia 20 do mês de referência. A razão disso é que a FGV precisa de 10 dias para calcular o índice, terminada a apuração dos preços. Adicionalmente, o índice cuja apuração se conclui no dia 20 não reflete somente os preços observados nesse dia, mas sim uma média dos preços observados nos 30 dias anteriores - ou seja, entre esse dia 20 e o dia 20 do mês anterior. A razão é que não há um índice para os preços de cada dia de apuração, mas somente um índice para a média dos 30 dias de apuração. A média está, pois, centrada não no dia 20, mas no dia 5 do mês de referência, pois esse é o ponto médio dos preços coletados entre o dia 20 de um mês e o dia 20 do mês anterior. Daí se segue que a inflação revelada pelo IGP-M para um dado mês não mede a inflação observada nesse mês, mas a inflação entre o dia 5 do mês anterior e o dia 5 do mês de referência - há um atraso de aproximadamente 25 dias entre a inflação observada e a medida pelo IGP-M. Isso por duas razões: a coleta do índice encerra-se no dia 20 (e não no final do mês) e o cálculo do índice está centrado no dia 5, 15 dias antes do fim da coleta. A enorme defasagem dos índices tem pouca influência sobre os valores reais dos contratos por ele corrigidos, se a inflação de um mês for mais ou menos igual à inflação do mês anterior e essa, por sua vez, mais ou menos igual à do precedente. Nesse caso, a inflação medida entre o dia 5 do mês precedente e o dia 5 do mês de referência será aproximadamente igual à ocorrida ao longo do mês de referência. Mas tal não ocorreu quando a bem-sucedida reforma monetária do Plano Real conseguiu deter a inflação quase de imediato. Como vimos, a inflação medida como sendo a de julho de 1994 foi na verdade aquela ocorrida entre 5 de junho e 5 de julho. Em lugar dos 5% observados em julho, o índice tendeu a apurar valores próximos dos 45% observados em junho. Pois foram 25 dias de inflação a uma taxa mensal de 45% e apenas 5 dias de inflação a uma taxa mensal de 5%. Em média, o índice acabou registrando 40% de inflação! Se o contrato em IGP-M acima descrito fosse corrigido a partir de tal medição, provocar-se-ia um significativo desequilíbrio econômico-financeiro, prejudicando o devedor em favor do credor. Pois, em lugar dos R$ 553.636 que, como vimos acima, assegurariam tal equilíbrio, ele teria um valor muito desequilibrado de R$ 738.181 [1.000.000.000x1,45x1,40/2.750]. Através do artigo 38 da Lei 8880 de 27 de maio de 1994, o Plano Real resolveu esse problema do desequilíbrio potencial na conversão dos contratos financeiros da seguinte forma. Em primeiro lugar, determinou-se o reajuste dos valores contratados, de 1 de junho até 1 de julho de 1994, de acordo com o último IGP-M integralmente calculado em cruzeiros reais, ou seja, aquele referente a junho de 1994. No exemplo acima, com uma inflação calculada em 45%, isso resultaria em 1.450.000.000 cruzeiros reais em 1 de julho de 1994. Esse valor foi então convertido à taxa de 2.750 - R$ 527.272 em 1 de julho. Até aqui, nenhuma novidade. O problema era como atualizar esse valor em reais para 1 de agosto. Para isso, solicitou-se à FGV que, mantida a metodologia do índice, estimasse a inflação de julho integralmente em reais. Observe-se que, de acordo com a metodologia do IGP-M, o cálculo dessa inflação resulta da divisão da média dos preços observados entre 20 de junho e 20 de julho pela média dos preços observados entre 20 de maio e 20 de junho. Dado o Plano, o problema era como calcular todos esses preços em reais. A solução usou o fato de que o real foi apenas a materialização em moeda da URV, que existia como medida de preços desde fevereiro de 94. Assim, bastou converter em unidades de URV (pelo valor da URV de cada dia da coleta) os preços coletados em cruzeiros reais entre 20 de maio e 30 de junho. A esses, adicionaram-se os preços coletados já em reais entre 1 e 20 de julho para completar o período de cálculo do IGP-M em reais de julho. Assim, a divisão da média dos preços em reais ou URVs de 20 de junho a 20 de julho pela média dos preços em URVs de 20 de maio a 20 de junho revelou a primeira inflação de 30 dias medida em reais. Inflação essa válida - de acordo com a metodologia do IGP-M previsto nos contratos - para o cálculo da inflação de julho de 1994. O valor resultante foi de 4,3%, em conformidade com a inflação calculada para esse mês pelos índices de outras instituições (ver tabela). O índice em reais assim calculado foi denominado pela FGV de IGP-2. A FGV manteve o nome "IGP-M" para um outro índice em cruzeiros reais, calculado, como se não tivesse havido o Plano Real, meramente pela conversão em cruzeiros reais de todos os preços coletados em reais entre 1 e 20 de julho, usando a taxa de conversão de 2.750, independentemente do dia da coleta desses preços. Ora, devido à defasagem de cálculo dos índices esse procedimento implica imputar à (pequena) inflação em reais de julho a (enorme) inflação em cruzeiros reais de junho. Vê-se na tabela que esse "IGP-M" de julho superestima em muito a inflação em reais efetivamente observada naquele mês, a qual é revelada pelo IGP-2, conforme atestado tanto pelo IPCA do IBGE como pelo IPC da Fipe. Conclui-se que a preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos financeiros impõe que sejam corrigidos pelo IGP-2, como de fato o foram, observando o Artigo 38 da Lei 8880. A opção pelo "IGP-M" desequilibraria fortemente tais contratos, beneficiando os credores privados em prejuízo do Tesouro.