Título: Poder está distante do brasileiro comum
Autor: Maria Inês Nassif
Fonte: Valor Econômico, 29/08/2005, Especial, p. A12

Brasil Real Instituto DNA Brasil reúne cidadãos comuns, com militância comunitária, para debater país

Se desse para resumir o que quer o brasileiro em poucas palavras, é possível dizer que ele deseja, fundamentalmente, interferir no seu próprio destino. Os instrumentos tradicionais da democracia representativa não deram aos cidadãos poder para transformar a cara do país, que continua pobre, injusto socialmente, pouco letrado e pouco ético. Se os 50 brasileiros reunidos no último final de semana pelo Instituto DNA Brasil forem, de fato, uma amostra fiel da população brasileira, é este o recado que dão ao Brasil. Mais claro e objetivo do que o transmitido, no ano passado, pelos 50 "sábios" reunidos pelo mesmo instituto para pensar o país. No seu formato original, o instituto foi consolidado em torno do núcleo dos 50 que foram considerados pelos organizadores os maiores especialistas em suas áreas de atuação, ou reconhecidos nacionalmente como militantes de causas sociais. Isso ocorreu no ano passado. Neste ano, a discussão dos "intelectuais formais" foi precedida por um encontro de 50 brasileiros "comuns". A designação "intelectuais formais", aliás, foi a escolhida pelos participantes do encontro do final de semana para designar o conjunto mais famoso dos integrantes do Instituto DNA. A si próprios, chamaram de "intelectuais não-formais", para deixar claro que somente a formalidade do conhecimento os separava dos "sábios". Os organizadores chamaram o grupo, inicialmente, de "brasileiros reais". Os 50 brasileiros foram escolhidos de forma a compor um microcosmo do Brasil, à luz do último Censo: 52% de mulheres, 48% de homens; 8% deles analfabetos, 36% que cursaram ou concluíram o curso fundamental, 12% concluíram o ensino médio ou a universidade e 12% não concluíram. O universo também levou em consideração a divisão por raça e renda. Todos eles têm militância comunitária, portanto são representativos de comunidades, e foram indicados por 200 entidades. Em outubro, as conclusões desse grupo serão levadas à segunda reunião dos "intelectuais formais" que acontecerá em outubro. Ao longo dos três dias de trabalho, algumas questões fluíram com muita insistência. A educação talvez tenha sido a que tenha surgido com mais intensidade em quase todas as salas temáticas. Em primeiro lugar, a reivindicação de uma "educação crítica" - eleita também pelos intelectuais formais como pré-condição para o desenvolvimento econômico e social do país. Em segundo, a "educação de qualidade". Esta última, de conteúdo menos ideológico que a primeira, surge como uma condição de igualdade de disputa entre os filhos dos pobres, que freqüentam a escola pública, e dos ricos, que podem pagar por um ensino diferenciado. A educação de qualidade é a porta de acesso à outra educação, a superior, considerada por eles tão importante como a educação básica e o ciclo médio. "Tem que ter uma oferta de vagas nas universidades públicas correspondente às vagas das escolas médias públicas", afirmou Janaína Santos Oliveira, de 25 anos, militante do movimento hip-hop. A educação também teria um papel determinante em outras questões consideradas prioritárias por eles, na cabeça dos 50 brasileiros "reais" - como, por exemplo, a ambiental e a política. Zenira Ferreira da Silva, de 45 anos, uma assentada analfabeta que vive na Bahia, insistiu na "educação moral". Mais tarde, explicou o que isso vinha a ser: "No Brasil a gente precisa não só de educação de ler e escrever", ensinou. A "educação moral" seria a noção do outro, da coletividade, que deve ser incorporada ao caráter do brasileiro desde pequeno. "Isso vai fazer com que um político eleito por mim me respeite, pois ele vai saber que não pode pegar para ele o que é de todos os brasileiros". O dinheiro da corrupção, afirmou Zenira, daria para assentar sem-terras, ajudaria as pessoas que vivem nas favelas e as que não têm escolas. Corrupção produz pobreza, concluiu. Da mesma forma como incomoda a esses brasileiros a distância que o poder político mantém em relação a eles, é pouco confortável ser invisível aos olhos dos outros brasileiros. A mídia foi outro tema que permeou as discussões - a mídia como porta-voz das "elites", dos "empresários" e até do "capital financeiro internacional". Numa das plenárias, quando o assunto foi colocado em debate pelo mediador, o empresário Ricardo Semler, os participantes discutiram formas de controle sobre os meios de comunicação, quase optaram por filtros de conteúdo e recuaram das duas possibilidades. "Isso parece censura", ponderou um deles. Por fim, concluíram que deveriam lutar pelo reforço de rádios e televisões comunitárias. Se, para as plenárias, os brasileiros destinaram as formulações mais articuladas - uma visão do todo para se chegar ao particular -, nos grupos temáticos o mecanismo foi inverso. A partir de suas vidas e de suas militâncias, os participantes indicaram uma linha de debates que, em muitos momentos, foi semelhante à trilhadas pelos "sábios" no ano passado. Numa das salas, em que se discutia o futuro do trabalho, Julia Rosa de Souza, de 45 anos, do Paraná, explicava com a sua experiência o que achava. Desempregada depois de cinco anos trabalhando numa estamparia, sem carteira assinada, só tinha uma máquina de costura e não sabia costurar. Descosturou roupas de seus filhos, prontas, para ver como fazia. Até que aprendeu. "Um dia passaram a me chamar de Júlia, a costureira". Mais tarde, aprendeu a fazer chinelos desmanchando um para ver como era. "Hoje me chamam de costureira e chineleira". O trabalho precário, o "bico", também foi descrito pela desempregada Dlauzia dos Santos Gomes, ex-doméstica. "Faço bijuterias para sobreviver". As duas concluíram que esse é o futuro do trabalho. A reforma agrária foi outro tema consensual. O encontro abrigava assentados, alguns ligados ao MST e outros não, mas eles não foram os únicos a considerar essa uma questão fundamental para o país. A terra representou quase uma materialização da má-distribuição de renda. Na última plenária, ao discutir mecanismos para reduzir a concentração de renda, concordaram que era justo estabelecer limites físicos para a propriedade da terra; para a riqueza por herança e por outras atividades, optaram por um mecanismo menos radical, de distribuição via tributação. Prevaleceu a tributação para terras e outros bens mais por razões de ordem prática. Os "brasileiros" conseguiram acordos, consolidados na "Carta dos brasileiros aos brasileiros". O exercício de consenso foi completo entre os "comuns", enquanto ele sequer conseguiu ser iniciado no encontro dos "sábios". "A diferença é que eles estão envolvidos nas lutas de suas comunidades no dia-a-dia; é a crença que faz a diferença", afirmou o empresário Emerson Kapaz. Semler - um dos principais idealizadores do instituto, na origem denominado de Fundação Semler - emocionou-se no momento do ponto final do documento. "É surpreendente como o Brasil que está aqui representado não tem poder suficiente sobre o seu destino, mas é surpreendente como esse Brasil é composto por otimistas incuráveis", afirmou. No início do encontro, os "comuns", assim como no ano passado os "sábios", definiram o que enxergavam para o Brasil, daqui há 50 anos. Céticos, os "sábios" traçaram o que consideravam um país possível, ainda pobre mas menos desigual. Os "comuns" pensaram um projeto de Brasil muito melhor: um país que teria completado a reforma agrária, acabado com a fome, em que toda a população teria acesso a escolas e hospitais, com um meio-ambiente sustentável e, futurista, com um transporte limpo e eficiente. Na hora do Brasil de hoje, no entanto, os brasileiros mantiveram os pés no chão. Havia a proposta de que se dobrasse o investimento em educação, mas a preocupação de que o brasileiro do lado de fora entendesse a proposta como leviana, se não dissessem de onde esse dinheiro seria tirado, no orçamento, para isso. "Você não são obrigados a serem especialistas em orçamento", tranqüilizou Semler. No decorrer dos trabalhos, deixaram claro que esse Brasil seria alcançado com mudanças estruturais, que por sua vez só se tornariam possíveis se houvesse consciência e participação da sociedade. Esse é o item, aliás, que abre a carta, e que representa a visão fundamental desses brasileiros sobre o Brasil. Como interferir é que são elas - aí eles voltaram para o seu mundo, em vez de procurar abrigo na política institucional. Reforçaram o papel das associações comunitárias, organizações não-governamentais, conselhos municipais, além de mecanismos de participação direta, como o plebiscito e o referendo.