Título: Reforma tributária é o único antídoto para guerra fiscal
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2004, Opinião, p. A14

A guerra fiscal entre os Estados se acentuou no período em que a carga tributária brasileira bateu recordes. A batalha pela concessão de incentivos, que reduz as receitas futuras dos cofres estaduais, tem sistematicamente acompanhado os renitentes pedidos dos governadores de afrouxamento das regras estabelecidas primeiro pela rolagem das enormes dívidas estaduais, e , depois, das restrições fixadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A legislação tributária do país aproxima-se do caos, em uma barafunda em que direitos e deveres mudam ao sabor do vento. Todos perdem com isso. As empresas têm de arcar com custos adicionais expressivos para o cumprimento da legislação e seguidas batalhas judiciais e os contribuintes pagam a conta da renúncia fiscal criada pelos Estados. A última reunião do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) mostrou que a entropia do sistema de tributos chegou perto do seu limite. Os secretários de Fazenda estaduais decidiram, preliminarmente, que estão dispostos a aceitar que os incentivos fiscais concedidos até agora sejam validados por todos. A partir daí, novos benefícios não serão admitidos, ao mesmo tempo em que se estabelecerá um prazo, provavelmente de dez anos, para o fim dos que já estão em vigor. Curiosamente, na proposta de reforma tributária feita pela União no início do governo Lula, um mecanismo parecido foi proposto e sofreu um bombardeio dos governadores. A intenção era estabelecer data limite para novos benefícios e para seu fim. No primeiro caso, valeria a data de promulgação da emenda da reforma - hoje adiada sine die - e, no segundo, por pressão dos Estados, um prazo de 10 anos. A discussão da reforma tributária, que resultou em um simulacro que apenas garantiu as receitas da União e alguma isenção para as exportações, serviu de pretexto para que os Estados elaborassem às pressas uma nova e alentada lista de vantagens. Por outro lado, as mudanças substantivas, que implicariam uma uniformização das leis, adensamento das alíquotas, que seriam reduzidas a cinco, e a mudança do sistema de cobrança do ICMS para o destino, encontraram forte oposição dos Estados. A inacreditável colcha de retalhos dos tributos estaduais, a que se sobrepõe a dos impostos e contribuições federais, se manteve. A solução de compromisso que está sendo alinhavada no Confaz é, então, uma réplica do que foi rejeitado pelos mesmos atores na reforma tributária. Ela tenta delinear um campo comum nos incentivos a indústrias, deixando de fora as vantagens dadas ao comércio atacadista do Centro-Oeste, estopim do novo episódio da guerra fiscal, em que São Paulo se recusa a reconhecê-los. As decisões do Confaz, porém, são estruturalmente precárias. A concessão de incentivos, pela regra, só é aceita por unanimidade. Como o consenso é raro, as alíquotas do ICMS, os diferimentos e outros expedientes vieram preencher o vazio de uma legislação enxuta e instalar a atual algazarra. A anarquia parece estar chegando a um limite, o que justifica a tentativa de trégua esboçada pelo Confaz. Ela migrou para os tribunais, onde a confusão é quase tão grande quanto nos departamentos jurídicos das empresas. Como informou o Valor em sua edição de ontem, o incentivo fiscal deixou de ser um bom negócio para muitas empresas - ele não é mais líquido e certo. Como as regras são fluidas e incertas, a mudança de governo nos Estados fez com que os novos mandatários passassem a contestar vantagens dadas pelos seus antecessores. É o que ocorre hoje, com estridência, no Estado do Paraná, apenas para citar um exemplo. Além disso, os Estados que por qualquer motivo se sentiram prejudicados pelos incentivos de outras unidades da Federação passaram a ter um comportamento mais agressivo e a não aceitá-los, anulando por um bom tempo os ganhos que eles trariam às companhias. Os litígios judiciais se avolumaram e congestionaram a fila de uma Justiça que se move com dificuldade no quebra-cabeças tributário. E como até as fronteiras geográficas são móveis no mapa de benefícios fiscais, há casos de empresas com negócios no Espírito Santo que tinham direito a vantagens quando a área de seus projetos pertencia à Sudene e deixaram de tê-las quando ela foi substituída pela Adene. Perpetua-se uma situação em que ninguém ganha com a política indiscriminada e aleatória de incentivos que motiva a guerra fiscal. Se há males que podem vir para o bem, a decisão do Confaz, com sorte, pode servir de incentivo extra para que se retome o projeto de reforma tributária, única chance de criação do sistema racional e justo de impostos que o país necessita.