Título: Governança e governabilidade
Autor: Jonas Gomes e Gilberto Braga
Fonte: Valor Econômico, 24/08/2005, Opinião, p. A12

Mecanismos são complexos em instituições públicas e privadas

Em torno de uma instituição, pública ou privada, gravitam pessoas, grupos de pessoas e até mesmo instituições imbuídos de interesses diversos nas atividades e objetivos institucionais. São as partes interessadas ("stakeholders"), que atuam diretamente na instituição ou através de agentes que tocam as atividades do cotidiano com base nos atos, contratos e procedimentos vigentes. Não raro a visão e os objetivos das partes interessadas, que deveriam ser convergentes, se tornam conflitantes em função de mudanças individuais, conjunturais ou estruturais, criando conflitos de interesse que estão na origem dos problemas de governança institucional. Esses conflitos são modelados na microeconomia pela teoria de agência, que tem por base dois axiomas: a inexistência de agentes perfeitos e a impossibilidade de se elaborar contratos completos. Uma vez instaladas, as questões de governança geram riscos institucionais que, se mal gerenciados, dificultam o cumprimento de metas, reduzem o valor da instituição e podem colocar em risco a sua sobrevivência (os problemas enfrentados pela Enron tiveram sua origem no descumprimento das regras básicas de governança). Nos Estados Unidos a expressão "corporate governance" foi cunhada em referência aos problemas de governança no âmbito das corporações americanas ("american corporations"), que no Brasil tem o seu correspondente nas companhias ou sociedades por ações, reguladas pela Lei das S.A. Na língua portuguesa utiliza-se a expressão governança corporativa - termo originado de uma tentativa de tradução direta da expressão "corporate governance" - no estudo dos temas de governança no âmbito empresarial. Uma análise da literatura mostra que na realidade ele se refere à governança das sociedades por ações, mas em nosso país os conflitos de governança envolvendo as partes interessadas e seus agentes numa sociedade por ações são bem mais complexos do que os existentes nas corporações americanas. Estas se caracterizam por possuírem o capital pulverizado em bolsa e os conflitos se concentram entre os acionistas ("shareholders"), pulverizados e distantes, e a diretoria executiva, caracterizando um problema que chamamos de governança horizontal. No Brasil os problemas de governança horizontal inexistem. Apenas recentemente a rede de varejo de moda Renner teve seu controle alienado mediante uma oferta pública pulverizada na Bovespa, sendo o primeiro exemplo de companhia com capital pulverizado no Brasil. Nossos problemas de governança se apresentam em formas diversificadas, sendo mais comuns os de governança vertical, onde os conflitos de interesse ocorrem entre acionistas controladores e os minoritários. A classificação dos problemas de governança não se resume a uma dicotomia entre governança horizontal e vertical. No espectro dessa discussão, presenciamos outras nuances que devem ser qualificadas com uma análise própria do contexto em que está inserida. O ponto de partida dessa classificação deve considerar o conceito de governança pública e governança privada. A primeira ocorre nos níveis municipal, estadual, distrital e federal, abrange as instituições públicas e tem como partes interessadas a população e os diversos agentes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A governança privada abrange as instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, apresentando também diferentes matizes. Os problemas de governança de uma ONG, de uma empresa limitada, de uma sociedade por ações com capital fechado, de uma companhia de capital aberto ou de uma companhia listada em bolsa, apesar de correlacionados, são bem distintos. Além disso, os problemas de governança de uma empresa dependem de sua fase de desenvolvimento: empresa nascente ("start-up"), emergente, média ou grande.

No âmbito público, a mais eficiente instituição de governança que surgiu nos últimos anos foi o programa de privatização

Em cada freqüência do espectro de governança mudam o ambiente corporativo interno e externo, as partes interessadas e, principalmente, o que podemos chamar de instituições de governança, que consistem nos mecanismos permanentes que influenciam e modificam os complexos cenários de governança nas institucionais públicas ou privadas, e que têm por objetivo mitigar os riscos originados pelos problemas de governança. As questões de governança de uma empresa estatal de capital fechado, como a ECT e o IRB, certamente são diferentes daquelas encontradas em uma empresa de capital misto. Em nosso país ainda encontramos as empresas de economia mista que têm capital aberto e são listadas em bolsa, tais como a Petrobras e o Banco do Brasil, cujas questões de governança apresentam peculiaridades distintas. Essas empresas devem atender os interesses do Estado controlador, que em geral são de natureza política, em detrimento dos interesses dos acionistas minoritários? Essa uma importante questão de governança. Certamente, os quatro princípios básicos de governança - "disclosure", "compliance", "accountability" e "fairness" - aplicam-se de um modo geral no ambiente público ou privado, porém em cada caso as idiossincrasias institucionais devem ser consideradas para se fazer o mapeamento dos problemas de governança de forma a estabelecer e direcionar de forma adequada as instituições de governança. A mitigação dos riscos de governança mediante o gerenciamento dos processos envolvendo os seus agentes e as suas instituições é fundamental para se atingir os níveis de governabilidade almejados pelas partes interessadas. No mundo privado, instituições reguladoras, como o Bacen e a CVM, organizações não-governamentais, como o IBGC, Anbid, Ethos, etc, e agentes do mercado, como a Bovespa e o Soma, têm contribuído para uma melhoria substancial da qualidade da governança privada. No âmbito público podemos considerar que a mais eficiente instituição de governança que surgiu nos últimos anos foi o programa de privatização de estatais, que foi extremamente eficaz na privatização do sistema Telebrás, de várias siderúrgicas e da Companhia Vale do Rio Doce. Certamente, um dos problemas de governabilidade do Brasil está relacionado com a governança das empresas estatais listadas em bolsa: o conflito entre os acionistas minoritários e o Estado controlador que não implementa controles de governança adequados que impeçam o uso da empresa com fins políticos ou partidários ou ainda, na melhor das hipóteses, para desenvolver políticas públicas em detrimento da geração de valor para a companhia.