Título: O método chinês de cavar túneis
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 24/08/2005, Opinião, p. A13

É possível que o leitor conheça uma antiga anedota que descreve o método adotado na China para a abertura de túneis. Bastaria colocar um milhão de chineses de cada lado da montanha e ordenar que cavem: se eles se encontrarem, terão feito um túnel; se não se encontrarem, terão feito dois túneis. Como anedota, essa história é um tanto sem graça, reconheço. É, porém, uma excelente metáfora do processo de desenvolvimento econômico que a China vem experimentando. É também um bom ponto de partida para uma reflexão sobre a política econômica que lhe dá suporte. Todos sabem que a economia chinesa vem crescendo a taxas elevadas, que os produtos chineses estão invadindo o mercado internacional, que as empresas chinesas estão se lançando mundo afora em um rápido e irresistível processo de internacionalização. É certo que esse desempenho espetacular se assemelha ao experimentado pela Coréia do Sul e demais tigres asiáticos há 25 anos ou ainda pelo Japão duas décadas antes. Para muitos analistas, a grande velocidade desses processos de catching-up sugere a existência de um certo modelo asiático de desenvolvimento econômico. Essa é, no entanto, uma conclusão baseada apenas em fatos aparentes. Uma observação mais detida da essência desses processos revela que existem diferenças importantes entre o modelo chinês e o de seus antecessores. O traço que distingue a trajetória chinesa da dos outros países emergentes da Ásia que a antecederam está no plano estrutural. Japão e depois Coréia do Sul e demais tigres asiáticos perseguiram um modelo em etapas. Primeiro, buscaram a inserção internacional em indústrias tradicionais, intensivas em trabalho, a exemplo dos produtos têxteis ou calçados. Posteriormente, a ênfase deslocou-se para bens de consumo durável e outros produtos mais sofisticados. Finalmente, tornaram-se potências exportadoras em produtos de alta densidade tecnológica. Tal qual em uma corrida de revezamento, cada etapa cumprida significava a passagem do bastão - a substituição do conjunto de produtos que formava o núcleo da estratégia de desenvolvimento industrial. A análise da evolução da composição das exportações desses países é bastante elucidativa. A pauta de exportações da Coréia, por exemplo, transformou-se radicalmente: enquanto 56% em valor das exportações coreanas em 1984 eram de produtos tradicionais, esse montante reduziu-se para 13% em 2004. Inversamente, a participação dos produtos de alta e média-alta tecnologia, em valor, evoluiu de 20% para 67% no mesmo período. A China, contudo, não parece seguir esse padrão. Inicialmente exportadora de têxteis, artigos de plástico, brinquedos, calçados e outros produtos tradicionais, a China conseguiu entrar no clube dos países exportadores de produtos de alta tecnologia sem renunciar à liderança competitiva nos produtos tradicionais.

Modelo econômico inédito assegura à China inserção privilegiada na economia mundial, ao mesmo tempo que dinamiza o mercado interno

Hoje, as exportações chinesas distribuem-se equilibradamente entre esses tipos de produtos. Considerando-se os 128 principais produtos responsáveis por metade do valor das exportações chinesas em 2002, 67 eram produtos tradicionais e 47 de alta ou média-alta tecnologia. Em valor, os produtos tradicionais correspondiam a 42% da pauta, enquanto os de média-alta tecnologia representavam 49%. Apenas a título de comparação, as exportações brasileiras exibem um padrão muito mais concentrado e especializado. Primeiro, metade das exportações é devida a somente 28 produtos. Segundo, são apenas dois os produtos tradicionais (5% em valor) contra seis produtos de alta-média tecnologia (23% em valor). O predomínio no caso brasileiro é de commodities, intensivas em recursos naturais: 20 produtos e 73% do valor exportado. Alguns ainda acreditam que a competitividade chinesa é baseada em baixos salários, o chamado dumping social. É provável que isso tenha ocorrido na fase inicial da expansão industrial, mas é certo que essa explicação não é mais válida. O baixo custo salarial pode ter sido a fonte de vantagens competitivas da indústria chinesa de produtos tradicionais do passado mas, evidentemente, é insuficiente como origem da competitividade das indústrias de bens de capital e eletrônica do presente. O desempenho competitivo da indústria chinesa é o resultado de um modelo econômico inédito, baseado em uma arquitetura de políticas tão ousada quanto fascinante. Dentre essas políticas, destacam-se: 1) a manutenção do câmbio desvalorizado, mesmo que às custas de uma ampliação inusitada dos níveis de reservas internacionais; 2) a edição de uma política de integração comercial aliada a uma política industrial dotada de forte ativismo no direcionamento dos investimentos, aí incluídas as inversões de empresas estrangeiras; 3) uma gestão macroeconômica que mantém controle sobre os fluxos de capital e preserva a capacidade de irrigar com crédito barato os planos de expansão da indústria e da infra-estrutura; e 4) uma política tecnológica de aprendizado rápido, baseado no intercâmbio entre técnicos e pesquisadores chineses e os detentores do conhecimento tecnológico mundo afora. O fato é que a China está obtendo enorme sucesso na promoção simultânea tanto das indústrias de alta tecnologia quanto das indústrias tradicionais. Ao criar as condições para que o país alcance esse objetivo, a política econômica chinesa assegura uma inserção privilegiada do país na economia mundial proporcionada pelas primeiras, ao mesmo tempo que dinamiza o mercado interno em conseqüência da grande capacidade de geração de empregos das segundas. Evidentemente, os meios pelos quais a China está conseguindo cavar esses dois túneis encerram importantes lições sobre o desenvolvimento econômico. A China desmistifica a dicotomia que pautou o debate sobre modelos de desenvolvimento nos últimos 30 ou 40 anos: modelos "voltados para fora" (baseado em promoção de exportações) versus "voltados para dentro" (baseados no mercado interno). A tese de ouro dos teóricos do desenvolvimento alojados no Banco Mundial era de que os países asiáticos, ao adotarem o modelo "voltado para fora", fizeram o certo, enquanto os países latino-americanos, seguidores do modelo "voltado para dentro", fizeram o errado. O modelo de desenvolvimento chinês claramente não cabe nessa dicotomia.