Título: O embate na repressão penal à sonegação
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2004, Legislação, p. E2

"O projeto de lei de reforma caminha em sentido oposto às tendências sociais expressas através da cúpula do Judiciário"

Revisite-se, hoje, o Projeto de Lei nº 3.670/04, de autoria do deputado Paulo Rubem Santiago (PT), para apresentar mais uma medida de expansão do sistema punitivo, consubstanciada na modificação da natureza dos delitos tributários (alterações propostas na redação do artigo 1º da Lei nº 8.137/90). Neste ponto, o que se parece ter em questão é saber se a efetiva supressão ou redução do tributo seria imprescindível à caracterização da sonegação fiscal como crime ou se, de modo diverso, o caráter delitivo do ilícito já estaria configurado com a simples conduta orientada a este fim, desde que tenha de fato idoneidade para lesar o erário. O projeto objetiva cambiar a previsão atual de crimes que exigem o dano ao bem jurídico, chamados ali de materiais, transformando-os em tipos ali denominados formais, já perfeitos com o simples perigo à arrecadação tributária - bem jurídico envolvido na sonegação fiscal (segundo Cláudio Costa em "Crimes de Sonegação Fiscal"). Por pruridos técnicos, serão aqui adotados os conceitos crimes de dano e de perigo, entre outras razões, por prestígio à clareza. A doutrina penal tributária, por via de regra, identifica os tipos previstos no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 como tipos de dano, apenados com até cinco anos de reclusão, além de multa. Já os contemplados no artigo 2º, cuja sanção privativa de liberdade não pode ultrapassar dois anos, são comumente compreendidos como aplicáveis às ações meramente perigosas, como tipos de perigo - assim tratado por Alexandre de Moraes, Gianpaolo Smanio e abraçado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso em Habeas Corpus nº 4.097-1 -, enquanto Cláudio Costa exige a lesão ao erário em todos os tipos previstos, com a exceção da primeira figura do artigo 2º, inciso III). O projeto pretende alterar o artigo 1º desta citada lei, tornando a tipicidade dos fatos ali previstos perfeita com o simples perigo ao erário. No entanto, a alteração na gravidade da conduta criminalizada não se faz acompanhar de correspondente abrandamento da reprimenda penal. Deste modo, em flagrante violação ao princípio constitucional da proporcionalidade, destrói a coerência legal e traz uma disparidade inexplicável entre as sanções criminais cominadas - a umas cinco e a outras dois anos de reclusão, sempre cumuladas com multa -, ainda que todas as condutas criminalizadas tenham produzido simples e idêntico perigo ao bem jurídico envolvido - crimes de perigo. A semelhança entre as condutas descritas nos artigos 1º e 2º, inciso I da Lei nº 8.137/90, produzida com a identificação do resultado típico exigível, passa a ser tão evidente que o projeto revoga o inciso I do artigo 2º, provavelmente em razão do fato de que não seria possível diferenciar os comportamentos ali descritos.

A proposta vem tolher o importantíssimo papel do Supremo de resguardar as garantias constitucionais

Sob um enfoque mais pragmático, o franco objetivo do projeto não parece ser simplesmente o de antecipar a tutela penal para o momento anterior à lesão ao erário. A meta, em última análise, é a de permitir que a persecução penal tenha início independente da conclusão do procedimento administrativo fiscal, em franca oposição ao recentíssimo entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Habeas Corpus nº 81.611. É que a exigência do dano para a constituição do delito - a chamada natureza material do crime - tem sido o fundamento para a posição abraçada pelo STF, que condicionou a iniciativa penal ao esgotamento da via administrativa. A linha jurídica adotada no pretório excelso é bastante coerente. Se a lesão ao erário é necessária à configuração do delito, então a constituição definitiva do crédito tributário (condição objetiva de punibilidade, no Habeas Corpus nº 81.611, ou condição necessária à formação do elemento normativo do tipo, no Habeas Corpus nº 83.414) é imprescindível ao início da persecução penal. Logo após a assunção, pelo STF, de postura despenalizadora, ocorrida em 10 de dezembro de 2003, o projeto em comento ataca o seu principal fundamento, cambiando a natureza do delito e tornando a efetiva lesão ao erário algo dispensável à sua caracterização. Mais além, para que não se cogitasse de novos argumentos, aproveita para revogar o artigo 83 da Lei nº 9.430/96, que fora por alguns apontado como fundador da tal condição de procedibilidade (George Tavares, Alexandre Lopes e Kátia Tavares em "Anotações sobre Direito Penal Tributário, Previdenciário e Financeiro"), embora o argumento não tivesse, naquele momento, merecido acolhida pelo Judiciário, nem no STF e nem no STJ. Novamente, o projeto de reforma caminha em sentido opostos às tendências sociais, aqui expressas através da cúpula do Judiciário. A proposta, em verdade, vem tolher o importantíssimo papel que aqui assumiu o STF de resguardar as garantias constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. Fica para uma próxima oportunidade aprofundarmos este aspecto.