Título: A confiança acabou
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 17/04/2010, Mundo, p. 26

O chanceler palestino, Riad Malki, veio a Brasília nesta semana com a clara intenção de conseguir apoio do Brasil e do fórum Ibas, formado pelo país com a Índia e a África do Sul, no processo de paz do Oriente Médio. Segundo Malki, a situação chegou a um ponto em que não é possível mais conversar com Israel sem que uma terceira parte esteja envolvida. ¿Não podemos ficar sozinhos com os israelenses a portas fechadas: uma terceira parte sempre tem que estar presente. É uma triste conclusão, mas nós sempre olhamos para as experiências que já tivemos, e é isso que as ações da outra parte nos mostraram ao longo desses anos¿, disse o chanceler, em entrevista exclusiva ao Correio. Após encontrar-se com os ministros do Ibas, Malki chegou a sugerir que o Quarteto, formado por Estados Unidos, Rússia, União Europeia e Nações Unidas, seja ¿reenergizado¿ pela inclusão de outros atores, como o próprio triângulo de emergentes. ¿Não estamos satisfeitos com o desempenho do Quarteto. As discussões têm de ser completas, não só com o Quarteto debatendo entre si, mas com as partes envolvidas, e questionando o que israelenses e palestinos têm feito¿, destacou. Segundo o chanceler, é preciso ir além das conversas, porque elas não levaram ¿a nenhum resultado¿ depois de 19 anos. ¿É preciso tentar encontrar possibilidades de solução, que devem ser impostas às partes, e não só conversar.¿

Malki só altera o semblante calmo e a fala segura ao comentar as recentes ações do governo israelense, como a ordem militar que permite ao Exército de Israel deportar da Cisjordânia ocupada palestinos que não possuírem uma permissão dada pelo goveno israelense. ¿Isso determina que, depois de mais de 44 anos de ocupação israelense na Cisjordânia, todos os palestinos, de uma hora para outra, tornaram-se invasores de seu próprio território. É uma ironia termos de provar à potência ocupante que a nossa presença no nosso próprio território é legal¿, protesta. Para ele, essa é mais uma prova de que o outro lado ¿não está interessado¿ na paz. ¿A intenção de Israel já é gerar uma reação violenta dos indivíduos, que se sentem ameaçados¿, acusa.

O que o senhor pediu ao Ibas? O que espera que os três países façam? Minha responsabilidade era explicar para eles a situação na Palestina e as ações de Israel que têm minado as chances de paz. Os israelenses estão provando, por meio de diferentes ações, que não estão interessados em permitir uma solução de dois Estados, especialmente quando se negam a corresponder à vontade internacional e congelar os assentamentos. E eu disse aos ministros do Ibas que gostaríamos muito de que eles desempenhassem um papel na promoção da paz na nossa região. A paz não pode ser monopólio de uma parte, de um grupo ou de um país, mas deve ser compartilhada entre todos os que querem que ela seja alcançada. O Brasil é um dos líderes do mundo e quer ajudar ¿ nós sentimos isso em diferentes contatos que tivemos recentemente, inclusive durante a visita do presidente Lula à Palestina. E como o Ibas pode ajudar? Bem, nós temos dois caminhos. Se derem certo os esforços americanos em convencer Israel a congelar os assentamentos, o Ibas pode dar um apoio ao Quarteto nas negociações. Mas se as conversas dos EUA com Israel não derem resultado, o que podemos fazer é não deixar que se crie um vácuo, especialmente se os americanos não estiverem interessados em pressionar Israel para que cumpra os acordos internacionais.

Na sua visita, o senhor falou em ¿intervenção¿ do Ibas e de outros países. Quando ela seria necessária? Eu mencionei a necessidade de intervenção no caso de os esforços dos EUA e do Quarteto falharem. Nesse caso, precisamos de lideranças corajosas para tomar decisões políticas corajosas. O que vem sendo pedido é uma intervenção positiva, para tentar achar formas de convencer Israel a buscar a paz com os palestinos. Mas agora decidimos sentar e esperar para ver o que os americanos têm a dizer sobre o que ouviram do lado israelense.

E até quando será possível esperar? Nós não queremos esperar mais do que um mês ou dois. Entendemos que a intenção de Israel é justamente deixar o tempo passar e fazer com que as pessoas esqueçam o assunto, que os outros países se ocupem de outras coisas. A nossa ideia, porém, é manter o assunto em pauta e manter a pressão sobre Israel, que não pode fugir de suas obrigações quando falamos em paz. É preciso também que o Ibas e outros países comecem a conversar com os Estados Unidos para tentar acelerar o processo, porque, à medida que o tempo passa, a situação fica pior. Então, é do interesse de todas as partes que o processo seja resolvido o quanto antes.

Como o seu governo avalia o desempenho do Quarteto? Em comparação a dois anos atrás, eu vejo que os comunicados emitidos pelo Quarteto avançaram, especialmente o que foi lançado em Moscou, em 19 de março, com referência específica aos assentamentos israelenses e a Jerusalém como capital de dois Estados. Mas não estamos satisfeitos com o desempenho do Quarteto. Esperamos mais, porque ele tem trabalhado em nome de todo o mundo. Ele não deve esperar oito meses ou um ano para se encontrar. É preciso que isso seja mais frequente, talvez todo mês, para ver os avanços que foram feitos ou não. E as discussões têm que ser completas, não só com o Quarteto debatendo entre si, mas com as partes envolvidas, e questionando o que israelenses e palestinos têm feito. O Quarteto precisa ser reenergizado e talvez até aberto à participação de outros membros ¿ como por exemplo o Ibas, que pode ser representado pelo Brasil. Eles poderiam trazer novas ideias. É preciso tentar encontrar possibilidades de solução, que devem ser impostas às partes, e não só conversar. Já conversamos nos últimos 19 anos e não consigo ver nenhum resultado, porque o processo, por si só, não foi conduzido de forma a gerar resultados. E, da mesma forma que a comunidade internacional criou o problema palestino, há 61, 62 anos, ela mesma deve encontrar soluções.

Nesta semana, entrou em vigor uma ordem do governo israelense que permitirá a deportação de palestinos da Cisjordânia que não portarem uma autorização do Exército de Israel. Como vocês veem essa decisão? Isso mostra que Israel não está interessado na paz, que continua violando as leis internacionais. De acordo com o artigo 49 da Convenção de Genebra, a potência ocupante não pode, de nenhuma maneira, deportar à força cidadãos de seu próprio território. É responsabilidade de todos os países que assinaram a Convenção de Genebra, entre eles o Brasil, ver se ela está sendo respeitada por todas as partes, inclusive Israel. Nós, como OLP (Organização para a Libertação da Palestina), também assinamos vários acordos com Israel desde 1983, reconhecendo a OLP como a representante do povo palestino, que tem a autoridade, dentro do território palestino, sobre o povo palestino. Essa ordem militar vai contra esses acordos e mina completamente o papel da OLP e da Autoridade Palestina. Além disso, ela anuncia que, depois de mais 44 anos de ocupação israelense na Cisjordânia, todos os palestinos, de uma hora para outra, tornaram-se invasores do seu próprio território. É uma ironia termos que provar à potência ocupante que a nossa presença no nosso próprio território é legal. Nós vamos lutar contra essa ordem militar, vamos mobilizar a comunidade internacional para lutar contra esse apartheid. Se eles não voltarem atrás, vamos às Nações Unidas, ao Conselho de Segurança, e, se não der em nada, à Corte Internacional de Justiça.

Esse tipo de ação pode gerar mais violência? A intenção de Israel é gerar uma reação violenta dos indivíduos, que se sentem ameaçados. Se eu sinto que a minha vida está em risco e que a comunidade internacional não faz nada para garantir meus direitos no meu próprio território, tenho de procurar todos os meios para proteger a minha vida. Nós sabemos disso, mas, como governo, vamos limitar nossa reação às ações legais, e não à violência, que seria usada mais uma vez como desculpa para Israel usar a sua superioridade militar contra nós.

Como o senhor vê a possibilidade de diálogo com esse governo de Israel, que, segundo o senhor, não quer a paz? É praticamente impossível, porque esse é um governo que chegou ao poder com uma campanha antipaz. Mas nós não escolhemos quem vai liderar Israel. Nós respeitamos a democracia e, se a população de Israel escolheu essa liderança, não nos resta alternativa a não ser conversar com eles. Ao mesmo tempo, a comunidade internacional não deve nos deixar sozinhos, confrontando esses indivíduos que não estão interessados na paz ou no diálogo. E é por isso que a intervenção de uma terceira parte, como o Quarteto, o Ibas ou outros países, é importante para não permitir que Israel tire vantagem de sua superioridade como força ocupante. Nós não queremos perder mais tempo. Israel tem usado esse processo de conversas e mais conversas nos últimos 19 anos para fugir de suas obrigações. E o que nós, palestinos, aprendemos com isso é que não podemos confiar nos israelenses. E não podemos ficar sozinhos com eles a portas fechadas: uma terceira parte sempre tem que estar presente.

Mas essa constatação é muito desanimadora¿ É uma triste conclusão, mas nós sempre olhamos para as experiências que já tivemos, e é isso que as ações da outra parte nos mostraram ao longo dos anos.

O primeiro-ministro Salam Fayyad disse que o Estado palestino será criado até 2011. Mas essa também não é uma decisão unilateral? Não, não será uma decisão unilateral. Há decisões que independem do sucesso das conversas com Israel sobre a paz, como construir nossas próprias instituições, preparar nossas leis e regulamentos. Isso tem que ser feito por nós mesmos, com a nossa capacidade. É claro que não precisamos de dois anos para finalizar nossas instituições, nós já temos um Estado, sob ocupação. Mas as discussões políticas para chegar à paz não podem durar mais do que dois anos. E, ao fim desse prazo, nossas instituições já estarão prontas. Se, depois de dois anos de discussões políticas, não houver resultado, é porque há problemas com as conversas de paz, e não devemos ser dependentes da vontade de Israel de pôr um fim na ocupação. Se isso não avançar, a comunidade internacional deve concluir que é hora de intervir, e de as Nações Unidas declararem o Estado palestino como declararam em 1948. Entenda que não vamos tomar nenhuma decisão unilateral, o que poderia minar ainda mais o processo e a nossa credibilidade.

Mas o lançamento de foguetes a partir de Gaza também mina o processo de paz. O lado palestino também não precisa fazer concessões? Nós estamos num processo de reconciliação interna, com mediação do Egito e apoio da Liga Árabe. Depois de várias conversas entre as partes, tomou-se a decisão de resumir tudo em um documento, que o Fatah assinou em outubro do ano passado. Mas o Hamas relutou em assinar, e por isso chegamos a um impasse. Agora, o processo de reconciliação pode ser finalizado a qualquer momento, só depende da vontade do Hamas, que precisa decidir se quer trabalhar de acordo com o interesse nacional palestino ou contra ele. Em relação aos foguetes, não existe de fato algo como resistência armada a partir de Gaza. Porque o Hamas, desde que assumiu o controle de Gaza pela força, tem impedido as demais facções, facções militares, de exercerem a resistência armada a partir de Gaza. Isso mostra como o Hamas usou a resistência armada para chegar ao poder. Mas nós dizemos, desde o início, que somos totalmente contra o lançamento de foguetes contra Israel, porque isso destrói a nossa credibilidade.