Título: Do Solidariedade à liberdade
Autor: Zbigniew Bujak
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2005, Opinião, p. A17

Movimento social polonês foi uma resposta à censura e à supervisão ineptas do regime comunista Embora a ascensão, há 25 anos, do Solidariedade - o primeiro movimento cívico independente no ex-império soviético - tenha tido enormes conseqüências políticas, ele não foi predominantemente nem um movimento político, nem um sindicato operário. Em primeiríssimo lugar, o Solidariedade foi um brado por dignidade. Nós simplesmente tínhamos chegado ao fim de nossa paciência com os onipresentes e todo-poderosos "apparatchiks" comunistas que ditavam nosso comportamento nos locais de trabalho, nos bairros e até mesmo em áreas de lazer. Escritores, jornalistas e artistas já não podiam suportar a censura e a supervisão ineptas. Também nas fábricas, os burocratas do partido queriam saber de tudo e decidir sobre tudo. Cada iniciativa cívica e qualquer tipo de atividade estavam sujeitas a avaliação e controle ideológico. Todos os que tentavam desobedecer podiam ter certeza de que seriam submetidos "aos cuidados" da polícia secreta. No inverno passado, ouvi um brado semelhante por dignidade na Ucrânia. As centenas de milhares de pessoas que acamparam durante semanas nas congeladas ruas de Kiev o fizeram porque estavam cobrando sua dignidade. Tanto as experiências polonesa como ucraniana convenceram-me de que a vontade de viver com dignidade é a mais poderosa motivação das ações humanas, um motivador capaz de superar até mesmo os maiores temores. Mas o anseio por dignidade não é suficiente para assegurá-la. Algo mais é também necessário. Em segundo lugar, o Solidariedade foi um movimento social. Isso significou que ele - na aparência um sindicato de trabalhadores - se tornou um abrigo para pessoas de todas os grupos e classes sociais na Polônia: trabalhadores e intelectuais, engenheiros e artistas, médicos e pacientes. Alguns discutiam apaixonadamente reforma econômica, outros falavam sobre desenvolvimento cultural, ao passo que outros, ainda, planejavam reformas no ensino e no establishment científico ou defendiam a defesa do meio ambiente. O Solidariedade criou um espaço público para todas essas discussões, ao mesmo tempo em que nos protegia a todos contra o aparelho do partido. Mas o Solidariedade era ainda algo mais. Era a versão polonesa da antiquíssima ágora grega, um local para encontro de todos os cidadãos, um lugar para livre conversação sobre nosso futuro comunal e individual, sobre todo tipo de problemas e soluções. Não tínhamos ainda um Estado livre, mas tínhamos já algo mais importante: uma sociedade civil livre e engajada na discussão da condição comum de seus membros. A sociedade representada pelo Solidariedade contava com 10 milhões de membros; com efeito, 10 milhões de cidadãos reais. Mas mesmo eles não eram suficientes para alcançar a vitória final sobre o partido e sobre o aparelho policial do Estado. Em terceiro lugar, o Solidariedade era uma instituição; de fato, uma instituição ímpar, em vista das condições sob as quais vivíamos, e é a seu formato institucional especial que devemos, em última instância, nossa vitória. Entre a estrutura organizacional do Solidariedade e as organizações oficiais do Estado e do partido havia o que poderia ser denominado um "fosso entre civilizações". Contra as estruturas autoritárias e hierárquicas do regime, erguemos uma instituição descentralizada, um enorme organismo empenhado em conseguir um consenso sobre seus objetivos e métodos de ação. Foi uma instituição comprometida com o respeito à integridade de todos os indivíduos e de todas as outras instituições.

O caráter unificador do Solidariedade cedeu lugar a divisões sociais e, entre muitas pessoas, a uma grande dose de alienação política e cívica

Isso pode não ser extraordinário em velhas comunidades democráticas, mas em nosso ambiente autoritário foi algo surpreendentemente novo. E apenas esse tipo de nova estrutura institucional poderia responder a essa profunda reivindicação de dignidade. E o que restou de tudo isso hoje? Indubitavelmente, o Solidariedade conseguiu um espantoso êxito político. A Polônia é um país livre, um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Européia (UE), ao passo que a União Soviética deixou de existir. Mas a história recente não foi gentil com os vitoriosos. Os líderes das revoluções democráticas na Europa Oriental rapidamente se desvaneceram no novo cenário. Eleições democráticas produziram políticos novos e mais experientes, freqüentemente dentre os que tinham feito parte do velho regime. E o mais notável foi que algumas das nossas esperanças de uma nova ordem social também se destroçaram no choque contra os rochedos das novas regras do jogo. É verdade que as instituições democráticas polonesas, apesar de suas falhas, funcionam relativamente bem. O crescimento econômico tem sido respeitável, e a vida está, sem dúvida, melhorando. Mas a vibração da sociedade civil, o senso de objetivo comum, as manifestações universais de solidariedade social defendidas por nossa União em seu tempo - de modo geral, todas essas coisas deixaram de existir. A própria União é uma sombra de sua antiga personalidade, um movimento partidário e predominantemente de direita, de trabalhadores impactados pela nova realidade econômica. E o mais notável é que o caráter unificador do Solidariedade cedeu lugar a divisões sociais e, entre muitas pessoas, na Polônia, a uma grande dose de alienação, tanto da política como do engajamento cívico. Será isso que a normalidade sempre significa? Será que os tempos da luta penosa sempre dão lugar a um gosto um tanto esvaziado de vitória? Serei apenas um veterano relembrando pensativamente os velhos dias de enfrentamento? Talvez. Mas não sou um tipo nostálgico. Sei que percorremos um longo caminho e não desejo um retrocesso. Mas teria sido realmente inevitável que tanta solidariedade esvaísse do nosso Solidariedade?