Título: Empresário evita IR na venda do controle
Autor: Vanessa Adachi e Marta Watanabe
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2005, Empresas &, p. B3

Casa-e-separa Aquisição travestida de joint venture tirou da Receita bilhões de reais em impostos desde 1998

Na metade de 2003, a Klabin vendeu a Riocell para a Aracruz por R$ 1,6 bilhão, numa típica operação de transferência de controle acionário. Entretanto, durante o período de apenas dois dias, entre 30 de junho e 2 de julho, Klabin e Aracruz foram sócias no capital da Riocell. E, como resultado dessa breve sociedade, a Klabin conseguiu economizar cerca de R$ 330 milhões em imposto de renda e contribuição social sobre o lucro que incidiriam sobre a venda de suas ações.

Em suas demonstrações financeiras do primeiro semestre daquele ano, a própria Klabin descreve a operação passo a passo e informa que, da maneira como foi feita, gerou um ganho de capital não tributável de R$ 989,6 milhões. A economia em impostos foi possível porque a operação não foi estruturada como uma simples venda das ações, sobre a qual incidiriam tributos e contribuições totais de 34% sobre o ganho de capital. Klabin e Aracruz não quiseram comentar. O que as duas empresas fizeram é apenas um exemplo de um tipo de operação legal e muito recomendada aos clientes por tributaristas de peso do país. Ela tem sido a senha para que centenas de operações de venda de controle acionário fechadas nos últimos anos no Brasil tenham ocorrido com um pagamento mínimo de impostos por parte dos vendedores. É difícil estimar quanto deixou de ser recolhido pela Receita Federal por conta disso, mas a freqüência com que a fórmula tem sido empregada dá pistas de que foram vários bilhões de reais. "Praticamente todas as operações de venda de empresas ocorridas nos últimos sete a oito anos no país, inclusive as grandes, foram feitas dessa forma", afirma um executivo experiente de um banco de investimentos internacional que prefere não se identificar. "Cerca de 90% dos negócios seguiram esse padrão nos últimos anos", reforça o sócio de uma das maiores bancas de advocacia do país, responsável por muitos desses negócios. E não foram só vendas de empresas que seguiram esse modelo. As transferências de controle de bancos, que ocorreram às dezenas no processo de consolidação do setor financeiro nacional, também obedeceram a esse padrão. Com algumas variações no formato, a operação que gera a brutal economia tributária passa por uma associação relâmpago entre vendedor e comprador. Na sociedade, o vendedor entra com os ativos e o comprador ingressa fazendo um aumento de capital em dinheiro. Quando a sociedade é desfeita, o vendedor sai levando o caixa e o comprador fica com a empresa e os ativos. O tempo de duração dessa joint venture é sempre curto. Em alguns casos, é de meses. Mas há casos gritantes em que o casamento dura apenas 24 horas. O modelo é chamado de "operação ágio" no jargão dos escritórios de advocacia. No momento em que o comprador faz o aumento de capital descrito acima, o valor injetado na joint venture embute um ágio sobre o valor patrimonial das ações. Isso provoca uma reavaliação do ativo registrado no balanço do vendedor, via equivalência patrimonial. Essa reavaliação via equivalência gera um ganho de capital que, pela legislação, não é tributável. Assim, quando finalmente sai da sociedade, o vendedor não tem imposto a pagar, porque, do ponto de vista contábil, o preço de venda é igual ao valor patrimonial dos papéis. Ou seja, no momento da venda das ações, não há ganho de capital. "Esse tipo de operação acontece porque a legislação tributária brasileira privilegia a forma sobre a substância", diz um especialista. Ou seja, não importa se o objetivo final da intrincada sucessão de atos societários seja a venda efetiva do controle acionário. O que vale é que cada ato societário, isoladamente, é perfeitamente legal. E o Fisco, na maioria das vezes, pouco tem a fazer. O caso da Cooperativa Mista Itaquiense, a Camil, do Rio Grande do Sul, é lembrado por especialistas como sinal de que o Conselho de Contribuintes tende a ser favorável às empresas. A Receita autuou a Camil por considerar que na venda de 50% da Camil Alimentos para a Rice S.A. a cooperativa deveria ter pago tributos sobre R$ 12,7 milhões e não sobre R$ 1,2 milhão, como aconteceu. Para reduzir o lucro tributável, a Camil e a Rice montaram uma típica "operação ágio", que se desenrolou entre os anos de 1997 e 1998. O fisco considerou que a série de operações societárias feitas entre Camil e Rice teve como único objetivo reduzir a carga tributária. Mas, em dezembro de 2001, a Primeira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes, embora tenha reconhecido essa intenção, entendeu que as operações eram lícitas e que os cálculos de impostos estavam de acordo com elas e deu vitória aos contribuintes. Mas mudanças podem estar a caminho. A Lei Complementar 104, de 2001, incluiu o artigo 116 no código tributário nacional, dizendo que o Fisco pode e deve avaliar o conteúdo econômico de uma transação, ou seja, o seu propósito real, para fins de tributação. Tal artigo ainda não foi regulamentado, mas um outro caso, julgado em novembro do ano passado pelo Conselho de Contribuintes, aponta que o Fisco pode ter sucesso com outros dispositivos legais. Trata-se da venda da rede Muffatão de supermercados, do Paraná, para o grupo português Sonae, ocorrida em dezembro de 1999, com ganho de R$ 26,4 milhões ao grupo paranaense, segundo o Fisco. A fiscalização da Receita autuou a empresa Pedro Muffato & Cia. Ltda., ex-controladora dos supermercados, por considerar que houve simulação e fraude no desenho da transação para evitar que os vendedores - nas pessoas físicas de Pedro Muffato, Pedro Mufatto Júnior e David Guilherme Muffato - pagassem imposto sobre ganho de capital. Em 11 de outubro de 1999, o Sonae ingressou como sócio da família Muffato na Muffatão Master S.A. e, horas depois, a sociedade foi cindida e a família saiu levando o caixa da empresa. Ainda no mesmo dia, a Master foi incorporada pela Sonae, deixando de existir. Depois da fiscalização, a Receita desconsiderou todas as operações intermediárias e aplicou os impostos considerando a venda pura e simples do controle. Por avaliar que houve simulação e fraude, o Fisco aplicou ainda uma multa agravada (dobrada) de 150%. Em novembro passado, ao julgar recurso dos vendedores, o Conselho de Contribuintes manteve, inclusive, a multa. O relatório final do conselho afirma que não há dúvida de que as "operações intermediárias, que na verdade não passaram de operações fictícias, tiveram como intuito exclusivo excluir da tributação valores que deviam ser tributados, caracterizando evidente intuito de fraude". "A discussão não terminou e pretendemos recorrer até a última instância", disse Pedro Muffato Jr. O caso pode ser levado a outra câmara do conselho e até ao Judiciário. O Sonae não quis se manifestar. "Por enquanto, a jurisprudência ainda é favorável ao contribuinte, mas toma-se um risco, já que o Fisco pode entender que houve simulação", diz um experiente advogado. Algumas vendas de companhias fechadas nos últimos doze meses já apontam para um maior conservadorismo (ver reportagem nesta página). Mas o planejamento tributário batizado de "casa-e-separa" continua com toda força, como mostra a venda de uma divisão de negócios feita por um grande grupo familiar de capital nacional no fim do ano passado. A transação, que chegou a ser anunciada como uma joint venture com um grupo europeu, menos de um mês depois transformou-se numa transferência efetiva de controle.