Título: A regulação da aviação civil e o Projeto de Lei 3.846/2000
Autor: Sérgio Werlang
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2005, Opinião, p. A11
Quem utiliza transportes aéreos no Brasil sabe como há problemas graves. Primeiro, os vôos são muito escassos. Por exemplo, mesmo de São Paulo ou do Rio de Janeiro é praticamente impossível ir e voltar no mesmo dia para capitais do Nordeste (há raríssimas exceções). Só há linhas freqüentes entre Rio e São Paulo. Até para a capital do país a oferta de vôos é relativamente pequena. Segundo, alguns aeroportos estão muito congestionados. Congonhas e Santos Dumont são exemplos. No ano passado o problema do aeroporto Santos Dumont foi "resolvido", com o desvio de todos os vôos regulares que não fossem para São Paulo para o aeroporto do Galeão. Esta "solução", que realmente foi eficaz para lidar com o problema do congestionamento, é altamente ineficiente do ponto de vista econômico. Com efeito, o que deveria ser feito é simples: leiloar as janelas (uma janela é essencialmente um espaço de tempo para a aterrissagem, taxiamento e estacionamento, ou da operação inversa para decolagem) do aeroporto. E permitir que estas sejam transacionadas por terceiros. Assim, haveria vôos para todos os lugares e aqueles que partissem de um aeroporto mais demandado (no caso não seria mais congestionado, e sim mais demandado) seriam mais caros. A "solução" adotada no caso do Santos Dumont, além do inconveniente de diminuir o conforto para quem embarca (afinal, se há congestionamento de um aeroporto é porque há demanda maior por este), não pode ser aplicada em Congonhas, pois o aeroporto de Guarulhos, além de apresentar um tráfico aéreo que é muito intenso, é muito mais distante do centro de São Paulo do que o Galeão é do centro do Rio. Como conseqüência, é comum hoje que haja atrasos de pelo menos meia hora para a saída dos vôos de Congonhas, mesmo fora do que poderia ser considerado um horário de pico. Terceiro, o preço das passagens aéreas é muito alto. Impede-se a competição direta de várias formas: 1) empresas aéreas têm que ter preço mínimo em várias rotas para evitar a "competição predatória"; 2) chegou-se a permitir que a Varig e a TAM compartilhassem seus vôos, uma prática que força a monopolização - tal prática foi vetada pelo Cade (autarquia que cuida para que haja competição entre as empresas); e 3) mesmo uma simples promoção oferecida por companhias internacionais para vôos para fora do país podem ser (e muitas vezes são) proibidas. Ou seja, temos um produto escasso, caro, de qualidade baixa (pelos atrasos) e que é mantido pela estrutura que privilegia a falta de competição, não só pelo controle de oferta de linhas aéreas e de janelas nos aeroportos, como também pelo controle de preços mínimos. Tem-se uma situação típica de regulamentação excessiva, que acaba por restringir artificialmente a oferta do produto e mantém preços elevados. Isso não pode permanecer como está. É preciso fazer uma ampla reforma da estrutura do setor aéreo. Nos Estados Unidos a liberalização das linhas aéreas e dos preços do transporte ocorreu a partir de 1978. Do início da década de 80 até 2001 o consumidor americano passou a pagar 70% a menos por quilômetro em termos reais. E, no mesmo período, o número de passageiros por ano aumentou 130%. Na Inglaterra o mesmo ocorreu a partir de 1984 com uma queda nos preços e aumento no número de passageiros que seguiu um padrão similar ao observado nos Estados Unidos.
É preciso reformar a estrutura do setor aéreo para mudar quadro de regulamentação excessiva que restringe oferta e mantém preços altos
Os princípios gerais da regulação do setor deveriam ser: 1) liberdade de competição tarifária, desde que a segurança fosse mantida (com a regulamentação e fiscalização da manutenção); 2) concessão livre de linhas aéreas; 3) venda de janelas para permitir que haja maior eficiência no uso da infra-estrutura aeroportuária; 4) permissão para que estas janelas possam ser negociadas no mercado secundário; e 5) privatização dos aeroportos (mantido, pelo menos por enquanto, o controle aéreo sob supervisão federal). A desregulamentação e a abertura para a competição até agora chegou de forma apenas tímida no Brasil. Contudo, o projeto de lei 3.846/2000, que cria a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) é um importante passo para permitir o funcionamento mais eficiente do transporte aéreo brasileiro. Com efeito, o projeto está sendo elaborado de acordo com os princípios (artigo terceiro): "... da liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, repressão ao abuso do poder econômico ...". Ou seja, um preâmbulo muito bom para um novo arcabouço regulatório do setor. Contudo, a lei apresenta vários problemas. Os três que mais se destacam são: a subordinação da Anac ao Conac (Conselho da Aviação Civil), a possibilidade de demissão da diretoria por "descumprimento das políticas estabelecidas para o setor pelo Poder Executivo" e da permanência por mais cinco anos das atuais concessões de linhas e janelas. Primeiro, a Anac deve subordinar-se ao Conac. Este órgão opina sobre a exploração da infra-estrutura portuária, sobre o regulamento da Anac, sobre a suplementação tarifária e sobre o plano geral de outorga. Em outras palavras, interfere em todos os aspectos que são relevantes para desregulamentar o mercado aéreo. E não possui estrutura independente do executivo. Ou seja, se o poder executivo decidir modificar uma diretriz anteriormente estabelecida, pode fazê-lo através do Conac. Isto é totalmente contra o espírito por trás da independência das agências reguladoras - para tornar a regulamentação do setor perene e independente do ciclo de mudanças no executivo (a cada quatro anos). O Conac não deveria existir. Para a eficiente regulação do setor, é suficiente a Anac. Segundo, a diretoria pode ser demitida por não cumprir uma determinação do poder executivo. Este ponto é o mesmo anterior: a diretoria tem que ter autonomia. Como em outras agências reguladoras. Segue-se que este motivo para demissão de algum membro da diretoria deveria ser retirado da lei. Por fim, nas disposições transitórias o projeto de lei prevê que as atuais outorgas deverão ser mantidas por cinco anos. Dependendo da forma como este artigo seja interpretado, poder-se-ia pensar que a estrutura atual seria mantida por mais cinco anos. Isto seria realmente muito danoso, pois está claro que o arcabouço ora em vigor forçou uma grande ineficiência na aviação civil brasileira. O projeto de lei 3.846/200 é um bom começo. Mas é necessário modificá-lo.