Título: O BID vai forrar o bolsa-família
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2004, Brasil, p. A-2

Acostumados a fazer empréstimos aos governos, ou com garantia deles, o Banco Mundial (Bird) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) passam por uma profunda discussão sobre seu futuro em um mundo povoado por países em desenvolvimento constrangidos voluntariamente ou não por fortes restrições ao aumento de gastos e das dívidas do setor público. A discussão inclui a criação de programas de empréstimo direto ao setor privado e financiamento a fundo perdido para programas sociais. Também inclui mudanças nos empréstimos tradicionais, para facilitar desembolsos, o que, neste ano, deve beneficiar até o programa bolsa-família, alvo de investigações e denúncias comuns a esse tipo de iniciativa assistencialista. Na próxima reunião do BID, em Okinawa, no Japão, o grande tema das discussões, impulsionado pelo governo brasileiro, será a nova estrutura de empréstimos ("new lending framework") a ser criada para aumentar a participação dos empréstimos ao setor privado no portfólio do banco e melhorar a qualidade dos financiamentos concedidos ao setor público. Antes, já em dezembro, porém, o BID deve beneficiar o Brasil inaugurando com o país um modelo inovador de empréstimos, apelidado pelos técnicos de SWAp (Sector Wide Approach). Este modelo permite ao banco financiar conjuntos de programas públicos já existentes, bem-sucedidos e em execução pelos governos. Hoje, o BID só empresta para novos projetos, o que cria uma indesejável pressão para criação de novos programas que competem por verbas com programas já existentes. Em dezembro, os diretores do BID devem aprovar um empréstimo de US$ 1 bilhão, no sistema de SWAp, para o programa bolsa-família, cujas atribulações e desvios exigiram do governo brasileiro a garantia de que serão cumpridas as metas de assistência previstas oficialmente. Em Washington, pegou mal a declaração do ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, de que seria praticamente impossível controlar o resultado do programa. Foi necessário mostrar ao BID que não é bem assim, e que o governo se comprometerá, de fato, a eliminar os problemas do bolsa-família. Os técnicos aumentaram o percentual do financiamento destinado a bancar assistência técnica para o cadastro e acompanhamento do programa. O SWAp (não confundir com as operações financeiras denominadas swap) começou a ser usado neste ano pelo Banco Mundial, e só agora será adotado também pelo BID. Ele modifica radicalmente a forma de atuar do banco, que, nesses empréstimos, deixa de aprovar projetos individualmente, e passa a financiar políticas públicas, de forma abrangente; deixa de enviar missões de fiscalização freqüentes e realiza, em períodos mais longos, avaliações de metas e resultados. Já é a primeira mudança na linha da nova estrutura de financiamento a ser debatida em Okinawa. Uma discussão complicada, pelas fortes exigências de garantias e pelo conservadorismo dos sócios ricos do BID, como Japão, Estados Unidos e países europeus.

Instituição pode ajudar programas já existentes

No caso do SWAp, uma das vantagens para o país é o ingresso de moeda estrangeira que pode ser incorporada diretamente às reservas internacionais - já que o empréstimo se destina a projetos já incluídos no orçamento, com receita prevista para cobertura das despesas. O Brasil precisa de mecanismos do gênero para reduzir o impacto dos vencimentos de empréstimos dessas instituições multilaterais, feitos para evitar o colapso das contas externas durante a crise do Plano Real, em 1998, e na crise pré-eleitoral de 2002. Hoje, com esses vencimentos, o Brasil, maior tomador de financiamentos das duas instituições, paga ao BID e ao Banco Mundial mais do que recebe em empréstimos desses bancos. Só no caso do Banco Mundial foram US$ 700 milhões líquidos pagos pelo país; em 2004 deverão ser US$ 590 milhões. Se der certo, a iniciativa do BID poderá, sem criar maiores problemas para o equilíbrio das contas financeiras do país, reforçar um programa social capaz de reduzir a miséria e ainda impor maior fiscalização nacional e internacional sobre seus resultados. Seria um bom exemplo de como vale a pena aplicar inteligência ao relacionamento do país com os bancos multilaterais, e não apenas estender o chapéu a essas fontes de financiamento externo. A discussão da forma de agir do banco inclui estratégias antigas, como a rediscussão de toda carteira de projetos - iniciativa tomada pela primeira vez de forma agressiva no fim dos anos 80, pelo então assessor internacional da Secretaria de Planejamento (Seplan), Clodoaldo Hugueney. O atual assessor internacional do Planejamento, José Carlos Miranda, fixou três objetivos principais para orientar a negociação com os bancos multilaterais: 1) dar prioridade a investimentos financeiros com custos menores e melhores condições de amortização; 2) buscar um número menor de projetos financiados, com volumes maiores de recursos; e 3) criar instrumentos financeiros que não exijam novas verbas orçamentárias como contrapartida pelos empréstimos. Esse último item tenta deter um dos principais problemas nas carteiras do Brasil com esses bancos, já combatida nos anos 80 por Hugueney: a pressão pela criação de novos programas que se interrompem pelas dificuldades de contrapartida orçamentária e terminam por gerar mais custos ao governo, como as multas pelo não uso dos recursos. O esforço para dar maior racionalidade ao relacionamento do país com essas instituições é o tipo do trabalho discreto que ajuda a melhorar a qualidade do gasto público e deveria ser imitado em outras esferas de governo.