Título: O desafio do medicamento personalizado
Autor: Kerry Capell, Michel Arndt e John Carey
Fonte: Valor Econômico, 08/09/2005, Especial, p. A12

Laboratórios A identificação de diferentes grupos genéticos possibilitará a prescrição de tratamentos individuais

No dia que o John P. Kane começou sua residência na Universidade da Califórnia, no San Francisco Medical Center, em 1959, ele recebeu uma ligação telefônica. Seu pai, Paul - um general do Exército aposentado que havia sobrevivido a combates nas duas guerras mundiais, nunca fumou e não apresentava problemas de saúde aparentes - havia morrido de um ataque do coração aos 66 anos. A notícia acabou empurrando Kane para o campo da cardiologia. Quase meio século depois, suas descobertas poderão alterar o tratamento da doença que mais mortes provoca no mundo industrializado. Trabalhando com sua parceira de laboratório de longa data, e esposa, Mary J. Malloy, no Instituto de Pesquisas Cardiovasculares da Universidade da Califórnia, Kane chegou a algumas conclusões surpreendentes: pelo menos metade das variações genéticas ligadas aos ataques do coração não têm relação óbvia com os níveis de colesterol, pressão sangüínea ou qualquer outro dos aspectos comuns às doenças do coração. Ao invés disso, elas sugerem mecanismos como inflamações, que podem ser provocadas por infecções ou um sistema imunológico com problemas. Isso implica que pode haver várias formas de doenças do coração, assim como há múltiplas formas de câncer. Se Kane estiver certo, os médicos poderão mapear o DNA dos pacientes e prever não só se eles têm propensão a um ataque do coração no futuro, como o tipo de doença do coração que eles poderão ter e que tipos de medicamentos ou procedimentos poderão funcionar em cada caso. Ao invés de receitar uma pílula para redução do colesterol, eles poderão optar por um antiinflamatório, por exemplo. Outros especialistas compartilham da convicção de Kane, incluindo diretores da Celera Diagnostics que teve como um dos fundadores o pioneiro do genoma J. Craig Venter. A Celera lançará, em poucos anos, um teste genético para doenças do coração, baseado em grande parte nas pesquisas de Kane. "Estamos rumando para o mar aberto", diz Kane. A mudança para os medicamentos elaborados para determinados perfis genéticos vai provocar alterações enormes numa indústria há muito tempo devotada a tratamentos que podem ser empregados em milhões de pessoas. A maioria dos medicamentos vendidos sob receitas são hoje eficazes para menos da metade das pessoas que os ingerem - e os efeitos colaterais podem ser piores que as doenças. "Do ponto de vista estratégico, do atendimento das necessidades de nossos clientes, o modelo atual de medicamentos de grande vendagem não funciona mais", diz Sidney Taurel, principal executivo e presidente do conselho de administração da Eli Lilly. As companhias farmacêuticas sofrem muito quando um chamado "blockbuster" fracassa - conforme ficou demonstrado pela Merck. Em 19 de agosto um júri do Texas declarou a Merck culpada pela morte, em 2001, de um paciente que estava usando o analgésico Vioxx, uma decisão que custou à empresa US$ 253 milhões. Bem antes dos problemas com o Vioxx, as grandes companhias farmacêuticas e a biotecnologia já haviam começado a explorar os medicamentos personalizados. Esses esforços deverão ganhar força, afirma Robert Goldberg, diretor do Center for Medical Progress, centro de estudos especializados em políticas públicas. "Se as companhias farmacêuticas não seguirem o caminho do entendimento e responder às tremendas variações genéticas na maneira como reagimos aos medicamentos, haverá mais litígios, e não menos", diz. Chegar a esse entendimento é um desafio porque uma doença nunca é um fenômeno simples. Pesquisadores têm mostrado que há muitas variedades de câncer de seio e leucemia, e o mesmo certamente acontece com outros tipos de câncer, doenças coronarianas e males neurodegenerativos - com cada variedade atingido subgrupos diferentes de pessoas, com base na vulnerabilidade genética. Os médicos estão tentando identificar diferenças entre grupos através de testes de DNA, na esperança de que os tratamentos também possam ser feitos sob encomenda. A idéia é que cada um de nós receberá os medicamentos que funcionam melhor, com base no subgrupo ditado por nossos genes. A medicina personalizada caminha para uma progressão natural. Em primeiro lugar, o mapeamento genético vai resultar em diagnósticos mais precisos. Em seguida, os médicos irão receitar medicamentos que irão ajudar, e não provocar mais problemas. Finalmente, haverá uma explosão de tratamentos para populações específicas. Isso não significa que os médicos irão produzir à mão pílulas para cada paciente, mas haverá tratamentos mais eficazes, menos desperdício - e muito menos danos colaterais ao estilo do Vioxx. Um marco foi a conclusão, em 2003, do mapeamento do genoma humano - 25 mil genes enrolados em forma de espiral nos cromossomos de cada célula. Desde então, bancos de dados de DNA vêm sendo criados com amostras de dezenas de milhares de pessoas. Ao comparar os genes, os pesquisadores podem ligar variações e mutações a todos os tipos de doenças. Certas companhias farmacêuticas mais visionárias também vêm realizando esforços dispendiosos para desenvolverem a medicina personalizada. Abbott Laboratories, Johnson & Johnson e Roche Holding da Suíça estão aprendendo como examinar amostras de tecidos ou sangue de um paciente e detectarem variações genéticas e bioquímicas relevantes, sempre mencionadas como biomarcas. A Pfizer e a Bristol-Myers Squibb, entre outras, estão usando essas ferramentas para talhar produtos farmacêuticos para grupos definidos. Alguns triunfos já estão sendo conseguidos. Um dos medicamentos mais lucrativos da Genentech é o Herceptin, que está sendo usado para tratar 175 mil pacientes de câncer no seio em processo de metástase que compartilham uma variação genética em particular. Os médicos também estão aprendendo como os genes regulam as enzimas do fígado que metabolizam os medicamentos, ajudando a evitar efeitos colaterais adversos.

A maioria dos remédios vendidos hoje sob receita são eficazes para menos da metade das pessoas que os ingerem

As histórias de sucesso ainda são raras. A medicina personalizada se assemelha à previsão do tempo, baseada em probabilidades e interpretação de dados. A presença de um único gene ou combinação de genes torna possível que uma pessoa venha a desenvolver ou escapar de uma determinada doença - mas o resultado é incerto. O campo não só ainda é imaturo como também está cheio de preocupações com as políticas públicas e a privacidade. Especialistas temem que pessoas possam não conseguir seguros de vida, saúde ou até mesmo um emprego se for descoberto que elas são portadoras de genes de uma doença debilitante. Além disso, há também uma discussão sobre o impacto da medicina personalizada com os gastos com saúde. Eles vão aumentar ou diminuir? Diagnósticos mais precisos permitiram aos médicos intervirem mais rapidamente, evitando alguns procedimentos custosos. Mas os hospitais também poderão pedir mais e mais testes, indiscriminadamente, para se cobrirem contra possíveis processos pela falha em detectar doenças, antes que seja tarde demais. Os defensores rebatem, afirmando que se o dinheiro conseguir salvar vidas, então ele estará sendo bem empregado. Mas a questão está longe de ser resolvida - e ela é apenas uma das muitas discussões sobre os custos, benefícios e cronogramas. Em meio a toda essa altercação, médicos, executivos das companhias farmacêuticas e pacientes continuam marchando para a frente, aproveitando os recursos das maiores instituições acadêmicas, hospitais e agências governamentais do mundo. Matemático experiente, Heino von Prondzynski, o principal executivo da unidade de diagnósticos da Roche parece mais um professor. Mas comente com ele o poder dos diagnósticos de transformarem a medicina, e este alemão geralmente taciturno passa a se comportar com um zelo quase missionário. Tirando um pequeno chip de silício do bolso da camisa, von Prondzynski afirma que o dispositivo - que não é maior do que um selo postal -, e outros como ele, irá lançar as bases de uma nova era nos tratamentos de saúde, possibilitando diagnósticos mais precoces e corretos, além de um tratamento mais personalizado. Lançado nos Estados Unidos em janeiro, o dispositivo da Roche - chamado AmpliChip - é o primeiro teste genético aprovado pela Food & Drug Administration (FDA) para identificar respostas a uma ampla variedade de medicamentos. Ele detecta variações genéticas que controlam duas enzimas do fígado responsáveis pela maneira como os pacientes metabolizam até 25% dos medicamentos vendidos sob receita médica. Para algumas pessoas, conhecidas como metabolizadores ultra-rápidos, há muitas dessas enzimas na corrente sangüínea. Isso leva o organismo a eliminar os medicamentos tão rápido que eles não fazem efeito. De 3% a 10% das pessoas têm falta dessas enzimas e não conseguem metabolizar os remédios, de modo que eles vão muito rapidamente para a corrente sangüínea, transformando até mesmo uma dose padrão em uma dose tóxica. Dispositivos como o AmpliChip, afirma von Prondzynski, "vão resolver os dois maiores desafios que o sistema de cuidados com a saúde enfrenta hoje: o custo e a segurança". Isso poderá economizar enormes somas de dinheiro para a sociedade. A cada ano, 2,2 milhões de americanos sofrem reações adversas a medicamentos vendidos sob receita médica. Os custos do tratamento de reações adversas chega a US$ 4 bilhões ao ano, só nos Estados Unidos, segundo um estudo do Journal of the American Medical Association. A recompensa para a Roche poderá ser enorme. A consultoria Jain PharmaBiotech estima que as vendas de kits e dispositivos de diagnósticos moleculares da Roche crescerão dos atuais US$ 6,5 bilhões ao ano para US$ 12 bilhões até 2010. Hoje, esses testes baseados nos genes são uma pequena parte das receitas que a Roche consegue com diagnósticos. A Roche tem uma vantagem nos diagnósticos moleculares. Contra os conselhos de seus próprios consultores científicos, a companhia desembolsou US$ 300 milhões em 1991 pelos direitos de acesso a uma ferramenta chamada reação em cadeia polymerase (PCR), da Cetus, na Califórnia. Inventada no começo dos anos 80, a PCR era então uma tecnologia que não havia passado por muitos testes, que permitia que vestígios de material genético fossem ampliados para análise. Poucos na época acreditaram que ela teria potencial de mercado. Mas os que duvidaram estavam errados. A Roche passou a usar a PCR como a base dos testes de diagnósticos que detectam de hepatite ao HIV e câncer. Anneke Westra experimentou o poder da tecnologia de diagnósticos da Roche. Onze anos atrás, aos 30 anos, ela era uma cientista promissora. Apesar de uma longa batalha contra a depressão, tornou-se especialista em biosensores, viajando pelo mundo para apresentar estudos científicos. Isso tudo mudou em setembro de 1994, quando recebeu o diagnóstico de que estava com desordem bipolar. Foi o começo de uma luta de uma década. O tratamento de Anneke envolveu uma dezena de psiquiatras e 18 medicamentos - cada um parecendo apresentar efeitos colaterais piores que o anterior. Sua saúde mental e física se deteriorou. Hospitalizada freqüentemente e incapaz de trabalhar, acabou tentando se matar. "Perdi dez anos da minha vida com os remédios que me deram", diz. O caso de Anneke é extremo mas não é único, e isso explica porque os médicos e pacientes estão ansiosos pela medicina personalizada. Uma em cada cinco pessoas sofre, em algum momento de sua vida, de um processo de depressão grave o suficiente para ter de ser tratado com medicamentos, Muitas dessas pessoas passam meses experimentando uma variedade de drogas, em dosagens diferentes, antes de chegaram a um medicamento que realmente funciona - se tiverem sorte. Para 25% dos pacientes, os antidepressivos mais comuns são ineficazes. Milhões de pessoas mais sofrem com os efeitos colaterais. Até a Roche lançar seu AmpliChip, não havia meios confiáveis de monitorar a família de enzimas encontradas principalmente no fígado e que ditam como nossos organismos metabolizam os medicamentos.

A comunidade médica já está se acostumando à idéia de poder unir diagnósticos e medicamentos

As pesquisas de Anneke a levaram até a Katherine J. Aitchison do Instituto de Psiquiatria do King's College de Londres, que confirmou as suspeitas da paciente. Usando o teste AmpliChip, Aitchison descobriu que Anneke tem um nível muito baixo no fígado de duas enzimas que metabolizam medicamentos, o que a torna sensível demais a numerosos tratamentos. Milhões de pessoas podem ser como Anneke, segundo afirma o José de Léon, professor associado de psiquiatria da Universidade de Kentucky e diretor médico do centro de pesquisas de saúde mental do Eastern State Hospital de Lexington. Ele está fazendo um estudo com 4 mil pacientes de psiquiatria em três hospitais estaduais do Kentucky, para determinar se a realização de testes em pacientes, para determinar essas variações genéticas antes da prescrição de algum medicamento, é viável do ponto de vista dos custos. Quatro anos atrás, a principal diretora da FDA, Janet Woodcock, se encontrou com representantes da indústria farmacêutica para discutir a promessa da medicina personalizada. "A reunião era para ser uma convocação", lembra-se Janet, hoje comissária adjunta da FDA. Mas os executivos das companhias não estavam prontos para aderir. "As pessoas de levantavam e diziam: 'Estamos apavorados'." A reação delas não surpreendeu. O uso de medicamentos de maneiras direcionadas levanta questões científicas, financeiras e normativas. Para as companhias, pode significar mercados menores para seus produtos e o risco de eles não conseguirem aprovações da FDA a menos que consigam provar que o alvo é adequado. Mesmo com essas preocupações, Janet é uma defensora apaixonada: ela tem uma visão da FDA trabalhando com cientistas e companhias para levar medicamentos melhores para o mercado mais rapidamente, e usar os medicamentos existentes apenas para os pacientes que vão se beneficiar deles. A visão é alimentada por novas evidências de que as variadas respostas dos pacientes aos medicamentos estão inscritas em seus DNAs. Recentemente, pesquisadores constataram variações em dois genes que prevêem o quanto o sangue vai "afinar" diante de uma dose de warfarin (anticoagulante). Os testes para essas variações e depois o ajuste da dose inicial a elas poderá ser um grande avanço da medicina - a prevenção de casos de sangramento provocados pelo excesso do medicamento, ou de coágulos devido à pouca quantidade. "Não é que existam medicamentos bons e ruins", diz Janet. "É que algumas drogas provocam problemas ruins a um pequeno grupo." Além disso, a comunidade médica está se acostumando à idéia da união de diagnósticos e medicamentos, especialmente quando da introdução de novos tratamentos. Para um medicamento de combate ao câncer com uma taxa de resposta de 10% junto à população em geral, "nós podemos transformá-la em uma resposta de 100% se conseguirmos descobrir quem de fato vai se beneficiar", diz Janet. "Então, os outros 90% não precisarão se expor ao medicamento e todo mundo vai ficar feliz." Isso também deverá significar menos desastres como o do Vioxx. Há também esperanças de que a unificação do desenvolvimento de medicamentos e diagnósticos possa simplificar a aprovação pela FDA. Ao se focar os testes clínicos mais nas pessoas com probabilidade de serem beneficiadas, os testes poderão ser menores, poderão levar menos tempo e assim também o processo de aprovação. E ao excluírem as potenciais vítimas dos efeitos colaterais já no estágio de testes, as companhias terão uma maior chance de ver seus produtos aprovados pela FDA. Este é o cenário mais otimista. O lado ruim é que as companhias vão descobrir que é caro identificar biomarcas que prevejam a resposta dos pacientes e depois desenvolverem os testes de diagnósticos necessários. Assim que os testes estiverem disponíveis, afirmam os céticos, os médicos mesmo assim poderão não usá-los antes de prescreverem suas receitas. E como a FDA não possui autoridade sobre a prática da medicina, ela não poderá insistir nesse ponto. Além disso, na medida em que as companhias forem investigando o impacto genético de novos medicamentos, poderão ter surpresas desagradáveis. E se, por exemplo, um medicamento que parece não provocar nenhum efeito colateral ativar um gene ligado ao câncer ou à capacidade de regeneração do fígado? O que faria a FDA? Exigiria anos de testes para mostrar que o medicamento não provoca câncer, ou para provar que ele não afeta o fígado? Desde seu encontro com os executivos das companhias farmacêuticas quatro anos atrás, Janet vêm trabalhando para assegurar às companhias de que elas não serão penalizadas por realizarem esses chamados estudos farmacogênicos. A agência decidiu que a divulgação de dados genéticos é uma decisão voluntária, e não obrigatória. E isso criou um "porto seguro" para as companhias discutirem suas descobertas com especialistas da FDA sem desencadear problemas normativos ou atrasos.