Título: Privatização do Correio japonês e o caso brasileiro
Autor: Paulo Yokota
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2005, Opinião, p. A10

Japão busca equilíbrio fiscal e avanço em direção à maior eficiência da máquina administrativa

Como não acompanhamos com muita freqüência o que se passa na política japonesa, é natural que haja por aqui pouca compreensão sobre o agudo problema que está acontecendo na segunda economia do mundo. Uma grave crise resultou na dissolução da Câmara Baixa (dos deputados) e da Dieta (Congresso) e a antecipação das eleições para o próximo dia 11 de setembro. O que chegou ao conhecimento dos brasileiros foi somente a causa da crise, ou seja, a derrota do projeto do governo japonês de privatização do Correio na Câmara Alta (Senado), e a decisão do primeiro-ministro Junichiro Koizumi de antecipar o pleito eleitoral. Este é um fato que deveria nos interessar mais profundamente, pois é similar a alguns dos problemas que enfrentamos, sendo rico em lições. Ele é parte de um longo processo de reforma administrativa destinado a conter o custeio público do Japão, que teve início nos primeiros anos da década de 80, comandado pelo lendário empresário-estadista Toshiwo Doko, um dos grandes amigos do Brasil. Entre outras conseqüências relevantes deste processo, foram privatizados a telefonia e o sistema ferroviário do país, apesar das fortes resistências políticas. A privatização da Nippon Telegraph and Telephone (NTT) resultou na maior empresa mundial da época e num dos sistemas mais eficientes de telecomunicação. A Japan Railways (JR) aproveitou todo o patrimônio imobiliário do sistema ferroviário e transformou as suas estações nos pontos-de-venda mais dinâmicos e disputados. Posteriormente, estas duas privatizações foram reconhecidas como grandes avanços no processo de reestruturação da economia e na retomada do processo de crescimento japonês. Agora chegou a vez do Correio no Japão, considerado a "jóia da Coroa". A estatal japonesa é uma das instituições que mais gozam de prestígio popular e credibilidade. O sistema de poupança popular do Correio conta com cerca de US$ 3 trilhões de depósitos, cifra ímpar no mundo, sendo a principal fonte de recursos estáveis de longo prazo. E por que a sua privatização? O Japão, como um país cuja população tem uma das mais elevadas idades médias do mundo, conta com crescentes despesas para atender o sistema social e previdenciário. O seu financiamento eleva o já alto endividamento público japonês, apesar dos juros baixos e prazos longos daquela economia. Procura-se tirar agora deste patrimônio o máximo proveito e a maior eficiência possível, como nos casos da telefonia e das ferrovias, para ajudar no equilíbrio fiscal japonês.

No Brasil, desestatização pode constituir-se num elemento importante, dentro de uma política rígida de controle fiscal

O primeiro-ministro Koizumi, ousado, procura marcar uma nova e importante etapa no processo de redução da máquina administrativa pública, cujo custeio já não cresce há mais de 25 anos. E poderá emergir como um líder diferenciado, que procura sair da mediocridade que marca a política japonesa das últimas décadas. O processo de privatização japonês, a exemplo do que aconteceu nos países desenvolvidos, foi precedido de ações destinadas a garantir uma transferência cautelosa dos serviços públicos ao setor privado. Foi adotado o chamado "golden share" para preservar as suas finalidades básicas. No caso do Correio, proposta de privatização prevê o desmembramento dos serviços em algumas empresas. O segmento financeiro será certamente a maior instituição bancária do mundo e continuará absorvendo parte da dívida pública japonesa, financiando parcela substancial dos recursos do Banco de Desenvolvimento do Japão e o JBIC (Japan Bank for International Cooperation), a agência de financiamento da importação e exportação. Com cerca de 12 mil agências, o patrimônio imobiliário do Correio japonês é apreciável e, como nos sistemas ferroviários, ele poderá ser utilizado de forma muito eficaz. As resistências políticas são fortes. Os dissidentes corporativistas do Partido Liberal Democrata (PLD), vinculados aos funcionários do Correio, votaram contra a proposta do governo. Estão sendo marginalizados e não contarão mais com a legenda para disputar as próximas eleições. O primeiro-ministro Koizumi está dando um lance que pretende modificar de forma substancial o quadro partidário, deixando aos eleitores a opção final: o avanço em direção à maior eficiência da máquina administrativa ou manutenção do status quo. Seus ministros de maior prestígio popular disputarão as eleições nos distritos de fortes e tradicionais caciques políticos. A opinião pública japonesa está impressionada pela ousadia de Koizumi, que poderá ganhar um novo mandato se obtiver a aprovação dos eleitores na formação de uma expressiva maioria na Câmara Baixa. As últimas pesquisas indicam que o apoio ao governo atual subiu de 37% para 51% e, entre os partidários do PLD, o apoio à decisão de Koizumi chegou a 67%. O episódio atual nos leva aos problemas do Brasil, que também luta pelo equilíbrio fiscal estável, inspirando discussões sobre a contenção do custeio nas lições japonesas. Em 1964, Og Leme, um brilhante economista liberal muito chegado ao então ministro Roberto Campos, propôs a privatização do Correio do Brasil, o que soava a todos como um exagero. Com a recente terceirização de muitos postos do seu sistema, pode ser que, depois de mais de 40 anos, o projeto de Leme venha a se tornar realidade, até porque o segmento financeiro do Correio brasileiro já está privatizado. Um impulso modernizador no Correio poderia auxiliar uma rígida política de controle do custeio público, aspirada por muitos segmentos responsáveis da economia brasileira. Até porque o equacionamento do déficit do sistema previdenciário tem avançado pouco.