Título: O principal desafio do governo Serra
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2004, Política, p. A-9

A cidade de São Paulo teve a melhor eleição de sua história. Os candidatos que chegaram ao segundo turno, Marta Suplicy e José Serra, fazem parte do seleto grupo dos melhores quadros da política brasileira. É natural que tenham se excedido por muitas vezes e utilizado argumentos incompatíveis com a grandeza da disputa, pois em qualquer democracia há uma competição pelo poder entre seres humanos e seus defeitos. Apesar destes arroubos, a discussão que travaram foi de altíssimo nível, como revelaram os debates da Bandeirantes e da Globo. A vitória de um deles, aliás, não desmerece o outro, principalmente porque o próximo governo será muito mais de continuidade do que de ruptura em comparação ao que houve na passagem das gestões paulistanas anteriores - basta lembrar o corte (equivocado) que Maluf efetuou em relação à prefeitura de Erundina, e o caos político-administrativo que Marta enfrentou depois do dilúvio da Era Pitta. O legado que o novo prefeito recebe é mais positivo do que negativo. Os programas sociais da gestão petista foram, no mais das vezes, bem-sucedidos. O programa de renda mínima paulistano, acoplado a ações para que os mais pobres pudessem "andar com as próprias pernas", constituem uma lição até para o governo Lula, com seu Bolsa Família cada vez mais assistencialista. Com os corredores de ônibus e o Bilhete Único, a área de transporte público foi, simultaneamente, uma das políticas mais redistributivas de nossa história e tornou mais rápido o percurso dos trabalhadores às suas empresas, reduzindo um dos maiores custos de transação da economia paulistana. A reurbanização do centro, em parceria com os outros dois níveis de governo, não trouxe só benefícios sociais e econômicos. Trata-se da medida que mais mexeu com a simbologia da cidade, em busca da recuperação e reconstrução da identidade da cidade, que fora estraçalhada pelos oito anos de malufismo. Os chamados CEUS constituíram a ação mais controvertida da prefeitura de Marta Suplicy, e foram muito mal debatidos na campanha, inclusive pela candidatura da situação. Isto porque, embora seja um programa educacional, ele vai além e acerta em cheio no diagnóstico: só é possível aumentar e melhorar a escolaridade dos mais pobres da periferia de São Paulo se a eles for dado algo mais do que o básico, como computadores e professores bem pagos e preparados - aspectos fundamentais, mas que sozinhos não resolvem o problema. É preciso dar aos mais pobres uma nova sociabilidade, capaz de garantir dignidade e auto-estima a comunidades tomadas pelo abandono do poder estatal, pela desigualdade crescente e pelo tráfico de drogas. Simplesmente abrir as escolas no final de semana é puro paliativo; é preciso reconstruir diariamente os padrões de vida dos bairros periféricos, dado que os CEUS não podem também se transformar em clubes para as horas vagas. Seu papel é o de dar oportunidades culturais e esportivas que potencializem talentos que a pedagogia tradicional ignora, além de dar o alicerce social imprescindível para todos os outros tipos de aprendizado. Obviamente, é possível aumentar a eficiência desta política, mas não se pode dizer que os CEUS são caros. Caro mesmo, ou melhor, caríssimo é o custo da segurança pública nos grandes centros brasileiros, com pouca efetividade e que só joga o problema para debaixo do tapete da sociedade. Sem entrar na ladainha da "herança maldita", o novo governo encontrará, por outro lado, uma situação financeira e administrativa bastante complicada. A dívida paulistana é muito grande e compromete boa parte do Orçamento. O grosso deste endividamento não advém da gestão de Marta Suplicy, e tampouco havia formas para reduzir drasticamente o pagamento ao governo federal. No entanto, o maior equívoco da prefeitura petista foi não ter feito uma ampla reforma administrativa, capaz de tornar as ações governamentais mais eficientes (fazer mais com menos), de melhorar a qualidade dos serviços, de avaliar e corrigir o rumo das políticas ao longo do caminho, bem como de modificar os padrões de relacionamento entre política e administração, ainda marcados por um forte clientelismo.

Administração paulistana precisa ser reformulada

Eis o maior desafio do prefeito José Serra: reformar o aparelho estatal do município de São Paulo. Para aperfeiçoar os programas que tiveram um bom desempenho no período petista e para inovar em outras políticas públicas, a gestão pública terá de passar por um processo de intensas modificações. Entre os aspectos que devem ser contemplados, destacam-se: profissionalização da burocracia, reduzindo a politização; treinamento maciço dos funcionários, para atender de forma mais ágil e satisfatória aos cidadãos; fortalecimento do planejamento e controle das ações governamentais, com investimento maior no chamado governo digital; e maior controle da população local sobre as subprefeituras. O prefeito eleito tem características que o habilitam a assumir esta importante e difícil tarefa. Serra tem conhecimento técnico, experiência administrativa, boa equipe de assessores e coragem para enfrentar desafios. Esta última qualidade também estava presente em Marta Suplicy, como se constatou na luta que teve contra o setor de transporte e suas máfias. O ex-ministro da Saúde revelou este traço na guerra das patentes, quando esteve do lado oposto de fortes interesses internacionais. Mas cabe frisar que a batalha pela reforma administrativa pode ser mais complicada, porque ela demora a apresentar os resultados e muitos destes não são visíveis para o eleitorado - leia-se: reforma do Estado não traz, por si só, votos. Só que sem tais mudanças na máquina administrativa, Serra não conseguirá cumprir suas promessas. Pior: caso não faça tais reformas ou seja mal avaliado nas medidas implementadas, a imagem do governo tucano paulistano manchará a aura de maior competência que o PSDB destaca como sua principal diferença em relação ao PT. Entre todas as reformulações que Serra terá de fazer na gestão pública paulistana, a mais espinhosa refere-se à relação entre política e administração, marcada pela interferência patrimonialista exercida pelos vereadores da cidade na distribuição dos principais cargos públicos. Nenhum prefeito conseguiu mudar este padrão perverso de relacionamento entre Executivo e Legislativo, seja porque compactuava com ele, seja porque perdeu na queda-de-braço contra os políticos locais. Se José Serra enfrentar e vencer esta batalha, seu mandato já ficará para a história.