Título: O Nobel e a autonomia do Banco Central
Autor: Sérgio Werlang
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2004, Opinião, p. A-13

A escolha dos dois agraciados com o prêmio Nobel este ano, Kydland e Prescott, relembra a importância da discussão sobre a autonomia do Banco Central. O prêmio foi concedido por trabalhos que ajudam a entender os ciclos econômicos. Contudo, a dupla de autores também é famosa por outra contribuição: eles mostraram que um compromisso prévio do governo em relação ao seu comportamento futuro pode aumentar muito o bem-estar dos indivíduos. A idéia básica é descrita a seguir. Parte-se do princípio que o Banco Central diz que vai controlar a inflação, e as pessoas acreditem na afirmação. Então, as expectativas da inflação ficam bem comportadas. Dessa maneira, os reajustes de preços e salários, que são essencialmente guiados pelas expectativas, são comedidos. Se o Banco Central cumpre a promessa, segue-se que as expectativas de inflação baixa são confirmadas, e a economia acaba crescendo de acordo com sua tendência de longo prazo. Mas o Banco Central pode sentir-se tentado a não cumprir a promessa, e propositalmente fazer com que a inflação seja maior que a esperada. Uma conseqüência de curto prazo desta política de geração de inflação inesperada é fazer com que a atividade econômica acelere-se acima da tendência de longo prazo. E os indivíduos vão ver que a inflação real foi acima daquela que havia sido prometida. Neste primeiro instante, o surto de crescimento pode gerar um bem-estar de curto prazo maior que o inconveniente de conviver com uma inflação mais elevada. Entretanto, no ano seguinte, sabendo-se que o Banco Central age de forma mais expansionista do que diz que vai fazer, as expectativas de inflação são reajustadas para cima. A partir daí o mesmo artifício (de prometer inflação baixa e gerar inflação alta) não mais causa surpresa à população. O resultado final, caso o Banco Central opte por manter sua postura expansionista (isto é, não tente fazer a inflação voltar a baixar, já que isso acarretaria um custo comparável ao benefício que foi causado ao aumentar a inflação), seria de um país que cresce na tendência de longo prazo, mas com uma inflação mais alta. Portanto, o ponto principal de Kydland e Prescott é que o comportamento oportunista dá ganhos no curto prazo, mas que no longo prazo as pessoas aprendem que o Banco Central admite inflação mais alta do que ele promete, e passam a agir de acordo, eliminando a possibilidade da repetição do surto de crescimento. No fim, tem-se o mesmo crescimento de longo prazo, mas com uma inflação mais elevada. Ou seja, em relação à situação original, em que a inflação era baixa, o bem-estar da população é menor, pois tudo seria o mesmo, exceto a taxa de inflação, que fica mais alta.

Com o sistema de metas, a meta de inflação passa a ser decidida fora do banco central; a atribuição dele é apenas cuidar para que seja atingida

A conclusão de Kydland e Prescott é que o compromisso de manutenção da inflação baixa deve ser seguido e que o Banco Central não deve ser tentado a desviar dessa política e inflacionar a economia para obter um ganho passageiro. Esse resultado teórico é conhecido desde 1977, mas ele não diz como pode ser projetado um banco central que tenha a característica institucional apropriada para seguir regras de longo prazo. Como fazê-lo? O trabalho de Kydland e Prescott encontrou eco imediato, pois era intuitivo que quanto mais independente um banco central, menor a taxa de inflação do país. Isso foi comprovado empiricamente (as primeiras comprovações empíricas sofriam de um problema na definição de banco central independente, mas muitos trabalhos mais recentes corrigem e reafirmam esses resultados). Segue-se que a receita institucional parecia simples: independência em relação à autoridade fiscal (o Banco Central não emite para financiar diretamente o Tesouro), mandatos da diretoria independentes do ciclo eleitoral do Executivo (os diretores têm mandatos fixos e só podem ser demitidos por processo semelhante ao de um "impeachment"), nomeações escalonadas para a diretoria para evitar descontinuidades, e escolha criteriosa de membros da diretoria, que sejam austeros e submetidos ao escrutínio do Congresso ou Parlamento. Os mandatos fixos e independentes do Poder Executivo fazem com que o horizonte de planejamento da autoridade monetária seja desvinculado do calendário eleitoral. Afinal de contas, é nas trocas de governo que a tentação de gerar um surto artificial de crescimento é maior. Com o tempo verificou-se que este tipo de banco central sofria de um problema: poderia ser que a média dos indivíduos que fazem parte da diretoria fosse mais avessa à inflação que o restante da população. Então, com o surgimento do sistema de metas para a inflação, ficou claro que era possível um aperfeiçoamento importante - a meta de inflação passa a ser decidida fora do banco central, e a atribuição deste é apenas cuidar para que a meta seja atingida. Isso é o que se conceitua como autonomia operacional. Por isso usa-se a expressão "banco central autônomo", ao invés de "banco central independente". Alguns bancos centrais ainda dispõem de cláusulas (que devem ser aproveitadas no Brasil) que permitem a demissão da diretoria no caso de a meta não ser cumprida. Por fim, nunca é demais lembrar a conseqüência prática da introdução da autonomia em um ambiente de metas para a inflação: a inflação esperada cai após a autonomia formal Pôde-se ver isso claramente no caso inglês. O Banco da Inglaterra utilizava o sistema de metas desde 1992 e era autônomo de fato, mas não de direito até abril de 1997. Em maio de 1997, Tony Blair concedeu a autonomia formal ao Banco da Inglaterra. A expectativa de inflação caiu em apenas um mês (de fins de abril a fins de maio de 1997) cerca de meio ponto percentual! Uma queda dessa magnitude é extremamente relevante, pois torna muito menos custoso manter a inflação, ou fazê-la convergir para a meta. A autonomia é muito positiva. O Brasil precisa adotá-la.