Título: "Antimartismo deu vitória a Serra"
Autor: Cristiane Agostine
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2004, Especial, p. A-14

A psicanalista e escritora Maria Rita Kehl não tem dúvidas de que uma mulher num cargo tradicionalmente masculino sempre fica mais vulnerável, mas não hesita em apontar os erros cometidos pela prefeita Marta Suplicy na exposição de sua imagem. O mais importante deles talvez tenha sido o de não politizar a resposta às críticas que recebia. Diz que a prefeita tentou, equivocadamente, mostrar que era doce. "O brasileiro aceita muito bem o autoritarismo. Parece que se confunde com a determinação. Para a mulher fica mais difícil: se for firme, decidida, é arrogante. A psicanalista assinou um ato de intelectuais e artistas pela reeleição da prefeita e deu a seguinte entrevista ao Valor: Valor: Foi a imagem que derrotou Marta Suplicy? Maria Rita Kehl: A prefeita se separou logo depois de ser eleita. Evidente que o Eduardo Suplicy sabia da separação iminente. Não faz sentido imaginar que ela tenha levado o marido a campanha inteira para depois lhe puxar o tapete. Mas, para parte do eleitorado, pareceu deslealdade. Além disso, casou-se logo depois. Foi um casamento ruidoso, falado e badalado. Como prefeita de uma cidade com tanta miséria, poderia ter sido mais discreta. Não é errado, foi o dinheiro dela. Mas pareceu escandaloso. Depois passou a se vestir de forma cada vez mais elegante, a viajar. A imprensa noticiou muito isso e produziu-se, assim, uma parte da rejeição. Valor: Um eleitorado que já elegeu uma vez Erundina e Marta pode ser taxado de preconceituoso? Maria Rita: A eleição de ambas teve muito de antimalufismo. Tenho um episódio que ilustra essa minha percepção sobre a imagem dela. No ato público da morte dos moradores de rua encontrei-a na rua e ela estava com seguranças. Qualquer governante estaria com segurança. Uma mulher do povo queria se aproximar, mas não conseguiu. Virou para mim e disse: quero chegar perto dela, mas tem sempre alguém protegendo os brilhantes e as jóias que usa. Ela tem segurança porque é prefeita, mas as pessoas pensam que não conseguem chegar perto dela porque ela é chique. Isso é muito forte. Tudo o que sai sobre a vida privada dela tem um cuidado excessivo com a aparência, de dizer que ela mexe muito no cabelo, no rosto. As pessoas não aceitam que uma personalidade pública tenha esse tipo de preocupação. Valor: Marta reclamou de preconceito, mas Ciro Gomes durante a campanha presidencial também foi punido por ter dito que o papel de sua mulher era dormir com ele. A sociedade é tão machista quanto a Marta diz? Maria Rita: A mulher é vista, de forma prioritária, como mãe. Quando sai desse papel, o sentimento é o de que ela vai abandonar a família. Mas isso é muito inconsciente, poucas pessoas diriam isso. O machismo é evidente, mas não dou ênfase a esse aspecto porque também há na classe média mulheres que lutam contra esse sentimento. Mas o preconceito é manipulado, caso contrário não seria tão alardeado. E, nesse ponto, não depende de ser homem ou mulher. Veja o Lula. Na sua eleição, ouviu que não sabia administrar. Mas tinha uma frase ótima, para responder àqueles que diziam que a disputa seria entre um filósofo e um encanador. Ele dizia que preconceito é como resfriado: só pega quem está vulnerável. Valor: Se ela não tivesse deixado passar a eleição para se separar a rejeição não teria sido menor? Maria Rita: Ela soube lidar muito bem com a separação. Ela disse - 'É isso mesmo, ninguém tem nada a ver com isso'. Mas com quatro anos de administração, ficou exposta. Favre não é discreto e está na política. A mulher do Serra não aparece, não está em evidência. A Marta ficou na berlinda porque era casada com um homem correto, muito amado e um grande senador que foi muito ético em toda a separação. O que a Mônica Dallari fez foi muito feio. Ela priva da intimidade dele. Foi oportunista e anti-ético. Está se rivalizando com a ex-mulher. Foi uma atitude infame e que mostra pequenez. Valor: As pesquisas mostraram que um dos problemas da imagem da Marta é a arrogância, mas Serra foi vítima da mesma crítica em 2002. Isso não derruba a tese de que ela é alvo por ser mulher? Maria Rita: A eleição de Serra só se explica pelo sentimento antimartista que dominou São Paulo. As qualidades que ele mostrou são abstratas. "Serra é do bem" mostrou uma campanha neutra. Ele fundamentalmente não é de esquerda. Tem a imagem de um técnico, não de um político. A imagem da Marta arrogante começou quando ela bateu boca com uma dentista que tinha perdido bens com enchente e a dentista questionou se a Marta pagava IPTU. Marta respondeu que pagava mais do que ela e isso ficou como a fala de uma pessoa arrogante, que estava esnobando porque é rica. Na verdade, ela queria falar que, no IPTU progressivo, paga mais quem tem mais. O brasileiro aceita muito bem o autoritarismo. Parece que se confunde com a determinação. Para a mulher fica mais difícil: se for firme, decidida, é arrogante. Se chora em público, não pode porque é fraca. Uma mulher num cargo tradicionalmente masculino, fica sempre mais vulnerável, mas a Marta poderia ter respondido politicamente a essa crítica da arrogância se tivesse politizado a campanha. Não tentando convencer que é doce, mas respondendo às acusações. Campanhas plastificadas perdem na qualidade política.