Título: A Previdência Social como política de garantia de renda
Autor: Marques, Rosa Maria e Mendes, Áquilas
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2005, Opinião, p. A12

Piso de um salário mínimo fez pobreza cair nas famílias com idosos

Na imensa maioria das vezes que a Previdência Social é notícia nos jornais, as reportagens e análises são centradas em sua pretensa inviabilidade financeira, com destaque para o impacto do aumento do salário mínimo sobre seu déficit. Pouco ou quase nenhum espaço é concedido ao papel da Previdência Social na garantia de renda dos idosos, no resgate da situação de pobreza absoluta e na redistribuição de renda no país. Mesmo no estrito campo financeiro, nenhuma linha é escrita sobre sua relação com o conjunto da proteção social construída pelos constituintes de 1988, isto é, com a Seguridade Social. Essas ausências, pressionadas pelo tema de ocasião "maior", o que se justificaria em termos jornalísticos, não permitem que os leitores e, portanto, a sociedade brasileira, realizem um verdadeiro debate democrático. A Previdência Social, mesmo sendo voltada somente aos trabalhadores do mercado formal, constitui um instrumento sem paralelo na América Latina. Fruto da unificação dos institutos de categorias promovida no regime militar, da ampliação de seu campo de ação durante a Nova República e dos avanços introduzidos na Constituição de 1988, é responsável por manter acima da linha de pobreza uma quantidade significativa de pessoas: em 1999, por exemplo, caso não fossem pagos os benefícios previdenciários, esse número passaria de 34% para 45%. Isso significa que, em 1999, os benefícios pagos pela Previdência Social eram responsáveis por diminuir em 11 pontos percentuais a população miserável do país. Em 1988, antes portanto da vigência do piso de um salário mínimo, a Previdência era responsável por manter somente 5,6% da população acima da linha de pobreza. Em 1999, esse percentual passou a 11% (Brant, 2001). Entre as mudanças introduzidas pela Constituição de 1988, destaca-se o piso correspondente ao salário mínimo, dando continuidade à tendência anterior de aproximar o menor valor de benefício a esse indicador. A importância desse dispositivo como garantidor de um mínimo de renda fica evidente quando se lembra que, em fevereiro de 2005, a quantidade de benefícios de valor igual ao salário mínimo representou 58% do total de benefícios pagos no mês. Desses, 42% foram recebidos por trabalhadores urbanos e 58% por trabalhadores rurais. Em termos absolutos, foram 11.883.977 benefícios de valor igual ao salário mínimo. Desnecessário dizer que a imensa maioria desses benefícios se refere a aposentadorias, pois essas constituem 64,01% do total de benefícios pagos. Em termos de volume de recursos envolvidos, foram gastos, nesse mês, R$ 3,081 bilhões, representando 32% das despesas totais com benefícios realizadas pelo Regime Geral da Previdência Social.

Em 1999, benefícios previdenciários eram responsáveis por diminuir em 11% a população miserável brasileira

Em termos de sustentação da renda familiar, o piso de um salário mínimo tem impacto extremamente significativo no meio rural. No período 1992-2002, as famílias de três gerações ou mais, que estavam em queda anteriormente, invertem sua tendência, passando de 17,5% para 19,3% do total das famílias rurais. Além disso, embora a pobreza e a indigência tenham diminuído em todos os tipo de famílias (com ou sem idosos), caiu de forma mais intensa nas famílias de idosos. Como anteriormente as famílias com idosos apresentavam menor registro de pobreza e indigência, ampliou-se ainda mais a diferença entre as famílias com e sem idosos, no tocante a esse quesito (Beltrão et alli, 2005). Mas do ponto de vista dos valores dos benefícios, sua distribuição, ao contrário do que muitos pensam, é muita próxima à dos salários dos ocupados (inclui os informais, portanto). Segundo o IBGE, em 2003, 24,1% dos ocupados ganhavam menos do que 1 salário mínimo, 20,6% recebiam de 1,5 a 3 salários mínimos; 73,2% até 3 salários mínimos, 2,8% entre 10 e menos do que 20 salários mínimos e, acima dos 20 salários mínimos, somente 1,3%. Esses números mostram não só a extrema concentração nos salários mais baixos, como a existência de uma forte desigualdade. Apesar dos benefícios pagos pela Previdência serem limitados por um teto, semelhante distribuição pode ser encontrada nos benefícios por ela pagos: em fevereiro de 2005, 74% dos benefícios concedidos tinham valor até 3 salários mínimos; até 5 salários mínimos, esse percentual sobe para além de 90%. Dessa forma, de um lado a Previdência Social, a partir da "sabedoria" dos que, embalados pelos ventos democráticos, queriam fazer dela um instrumento de garantia de renda, resgatando em parte a chamada "dívida social" do período militar, permite manter acima da linha de pobreza número significativo de brasileiros; de outro, como seria de esperar, reflete a desigualdade da renda dos ocupados. Mas além dessa desigualdade existe a outra, marca registrada do Brasil: 75% da renda nacional é detida por 1,162 milhão de famílias. Frente a isso, quais seriam os interesses que estariam sendo contemplados quando a insistência em dizer que a Previdência é deficitária, escondendo o fato de a Seguridade Social ser altamente superavitária? Certamente não são os interesses daqueles que, através dela, têm a oportunidade de atravessar a linha que separa a pobreza absoluta da relativa.