Título: O marco regulatório do setor de gás natural
Autor: Lauro Celidônio Neto e Rosoléa Folgosi
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"O projeto de lei dá competência à ANP para a implementação de uma política energética nacional para o gás natural"

A despeito de toda a regulamentação do setor do petróleo, nunca houve no nosso ordenamento jurídico um marco regulatório específico para o setor de gás natural que pudesse orientar os agentes do setor e estimular maior participação do gás em nossa matriz energética. No Brasil, o gás natural é visto como um insumo para a produção de energia elétrica emergencial por meio de usinas térmicas em épocas de crise de abastecimento. Mas esse quadro pode - e deve - mudar. Efetivamente, o gás natural é um insumo importantíssimo na geração de energia elétrica. Uma política para o gás natural deve levar em conta essa utilização, mas não deve ficar atrelada a esse fim, especialmente em um país cuja matriz energética é primordialmente hidrelétrica. Uma política brasileira para o gás deve incentivar sua produção, regular sua importação e transporte e promover a concorrência, sem permitir, entretanto, que o preço do gás incentive uma guerra de preços entre matrizes energéticas ou sirva como controle de inflação, afastando o interesse de investidores de longo prazo. Em junho deste ano o senador Rodolpho Tourinho apresentou um projeto de lei de amplo espectro dispondo sobre a importação, processamento, transporte, armazenagem, liquefação, distribuição e comercialização de gás natural no país. Este projeto de lei dá competência à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para implementar uma política energética nacional para o gás natural, regular, fiscalizar, promover as licitações, celebrar os contratos e fixar as tarifas de transporte e de armazenagem - enfim, ser a agência reguladora do gás natural. Como a titularidade dos serviços locais de gás canalizado é dos Estados (segundo o artigo 25, parágrafo 2º da Constituição Federal), o projeto de lei não cuida da distribuição nem da comercialização. Todavia, em uma possível inconstitucionalidade, o projeto veta ao Estado outorgar concessões para distribuição a empresas que não realizem, com exclusividade, essa atividade. O projeto de lei estabelece que as atividades de transporte por meio de dutos e de armazenamento (para uso próprio) serão exercidas mediante um contrato de concessão, enquanto as atividades de importação, exportação, processamento, compressão, descompressão, liquefação e regaseificação de gás natural serão exercidas mediante uma simples autorização da ANP. Todavia, para a construção e operação, quer de gasodutos de transferência e de produção (que não estão sujeito ao regime de acesso obrigatório aos carregadores), quer de instalações de armazenagem de gás natural e de gás natural liquefeito, inclusive terminais marítimos, não se fará necessária uma concessão, e sim uma autorização da ANP. Por outro lado, caberá aos Estados conceder autorização às empresas que estejam interessadas em comercializar o gás natural. Essa autorização não poderá ser dada, diretamente, às empresas transportadoras e armazenadoras, ou para as distribuidoras de gás canalizado, a não ser para as áreas objeto do seu contrato de concessão de distribuição celebrado com o Estado concedente. Louvável a preocupação do projeto em garantir a competitividade e o tratamento não discriminatório, determinando que os contratos de interconexão entre gasodutos sejam homologados pela ANP, obrigando a transportadora a dar acesso a sua capacidade para carregadoras interessadas, com tarifas homologadas.

No Brasil, o gás natural é visto como insumo para a produção de energia emergencial em épocas de crise de abastecimento

A transportadora e a armazenadora não poderão comprar ou vender gás natural a não ser para consumo nas suas atividades, e devem, em princípio, exercê-las em regime de exclusividade. Faculta-se, todavia, o exercício de ambas as atividades, desde que mantidas contabilidades distintas, e neste caso a empresa armazenadora também fica sujeita ao regime de acesso, devendo oferecer sua capacidade às empresas carregadoras interessadas sob as tarifas fixadas pela ANP, em tratamento não discriminatório. Previamente à realização de uma licitação para a escolha das novas transportadoras, a ANP deverá realizar um concurso público para definir os novos gasodutos e para dimensionar as capacidades necessárias para atender às empresas carregadoras, que são aquelas que têm interesse em adquirir, da transportadora, capacidade de transporte, e que assinarem com a ANP um termo de compromisso de compra da capacidade solicitada. A outorga de concessão à transportadora e à armazenadora será precedida de uma licitação, que será julgada segundo o critério de menor receita anual requerida, que é estimada pelo múltiplo da capacidade de transporte projetada do gasoduto ou da capacidade de armazenamento, pela tarifa máxima prevista. Para aumentar a confiabilidade do sistema e promover o uso eficiente dos gasodutos de transportes e unidades de armazenagem, o projeto de lei cria, espelhando-se no Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o Operador do Sistema Nacional de Transporte de Gás Natural (ONGÁS), que deverá ser uma pessoa jurídica de direito privado, uma associação civil, tendo como associadas as empresas titulares de concessão ou de autorização para o exercício das atividades da indústria de gás, bem como as empresas usuárias dessa fonte de energia. O projeto com certeza merecerá uma análise mais pormenorizada e debates profundos, especialmente no que concerne à interface entre as competências legislativas da União e dos Estados e à garantia de concorrência efetiva no mercado do gás natural, em especial quanto ao papel da Petrobras nesse mercado. Reveste-se, pois, de total importância a discussão deste projeto de lei, que visa criar um marco legal específico para o gás natural no Brasil , e, com isso, ampliar a infra-estrutura existente, otimizar sua utilização e promover concorrência entre os agentes, com base no investimento privado. A desejável conseqüência será a redução do risco de desabastecimento de energia, seja em razão da crise na Bolívia, da falta de chuvas ou da paralisação dos empreendimentos hidrelétricos.