Título: CVM fecha cerco à informação privilegiada
Autor: Mara Luquet
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2005, Empresas &, p. B2

Fiscalização Autarquia investe US$ 4 milhões para aprimorar o rastreamento de operações suspeitas

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador e fiscalizador do mercado de capitais brasileiros, está estreitando cada vez mais os caminhos da informação privilegiada (ou "insider", jargão que nomeia as transações desleais realizadas no mercado de capitais pelos detentores de informações que não foram anunciadas ao mercado). Duas frentes de trabalho estão em plena execução no órgão. A primeira se dá no front tecnológico, para a melhoria dos sistemas de rastreamento de operações suspeitas. A segunda no front político, junto ao Ministério da Fazenda, para que o órgão elimine os obstáculos legais que hoje impedem o xerife do mercado de capitais de quebrar o sigilo bancário de suspeitos. No início de 2006, entra em operação um sistema de acompanhamento de negociações na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) de segunda geração com tecnologia franco-belga. Trata-se de um dos mais modernos sistemas para rastrear as operações no mercado de capitais e identificar quase que instantaneamente as partes envolvidas nas negociações. Waldir de Jesus Nobre, superintendente de relações com o mercado e intermediários da CVM, diz que o sistema está em fase de implantação e sozinho representa um investimento de mais de US$ 1 milhão. No total, US$ 4 milhões estão sendo investidos pela CVM para aprimorar seus sistemas de fiscalização, aumentar o efetivo da área e capacitar seus funcionários. Os recursos fazem parte do projeto de financiamento do Banco Mundial aprovado em 2004 que estão sendo desembolsados este ano. Paralelamente, a CVM luta para tirar as barreiras que a impedem de quebrar o sigilo bancário nas suas investigações. "Essa limitação nos impede de ir até o fundo da investigação", diz Nobre. "Não conseguimos enxergar, por exemplo, quem deu o dinheiro para financiar o participante da operação", acrescenta. Esta é uma barreira que impede também a CVM de aderir ao memorando multilateral de entendimento contra a lavagem de dinheiro da International Organization of Securities Commission (Iosco), entidade que reúne os órgãos reguladores e fiscalizadores dos mercados de capitais de diversos países. A CVM participou diretamente da redação do memorando e é membro do grupo de escrutínio dos países que se candidataram a aderir a ele. No entanto, as limitações legais de quebra de sigilo bancário e ao repasse de informações de natureza criminal ao Ministério Público impedem hoje a própria CVM de aderir ao memorando. Nobre relata um caso recente que escapou das mãos da CVM porque a quebra de sigilo bancário não foi viabilizada. Ele conta que no meio de uma tarde de negociações na bolsa, por volta das 15 horas o preço de um determinado papel teve uma alta muito acima do normal. Às 16 horas, foi anunciado um fato relevante da empresa que fez uma oferta de compra para fechamento de capital. "Certamente ele fez o 'insider'", diz Nobre. No entanto, foi possível quebrar o sigilo bancário do investidor (provavelmente um "laranja") apenas no dia da operação, o que não foi suficiente para rastrear o "insider". Eduardo José Busato, analista da CVM que trabalha na área de fiscalização, diz que hoje o sistema do órgão detecta três comportamentos fora do padrão nas negociações de mercado. Um por meio de número de negócios, outro por volume financeiro negociado e o terceiro por preço da ação. A CVM analisa a média móvel de 60 pregões nesses três quesitos e sempre que há uma variação acima do normal a ação cai no filtro da fiscalização. Quando a ação cai num desses filtros é iniciada então a investigação. Ocorre que com o sistema atual o processo de investigação é lento. "Perdemos muito tempo hoje manipulando dados", diz Busato. Isso ocorre porque a CVM recebe os dados brutos da bolsa e com a nova tecnologia todas as informações vão para a CVM num formato mais amigável. Os sistemas da bolsa e o da CVM serão integrados e diariamente a bolsa enviará todas as informações. "Vamos conseguir quem foi o comprador e quem foi o vendedor em cada negociação", diz Busato. "Queremos ganhar tempo e agilidade nos processos", acrescenta.

Obstáculos legais ainda impedem o regulador do mercado de quebrar o sigilo bancário de suspeitos

Atualmente dez ações caem nos filtros da CVM diariamente, em média. Desse total, oito casos podem ser explicados por fatos do mercado e duas seguem para uma investigação mais detalhada. Comprovar um caso de "insider" não é uma tarefa simples. Por isso, a CVM quer dar também muita ênfase a prevenção. O artigo 11 da Instrução Normativa 358, por exemplo, trata do dever de informar tanto da companhia como das compras e vendas de ações de seus executivos. As medidas preventivas no Brasil hoje são consideradas muito boas por especialistas internacionais. Luiz Leonardo Cantidiano, ex-presidente da CVM e hoje responsável pelo escritório Motta, Fernandes Rocha Advogados, chegou a fazer parte da força tarefa da Iosco que estuda a prevenção de "insider" no mundo. Ele diz que o Brasil é muito bem-visto pelos reguladores internacionais em relação ao avanço de medidas preventivas. No Brasil, o caso clássico de "insider" foi o protagonizado pela Servix Engenharia, no fim dos anos 70. O caso Servix foi o primeiro inquérito da história da CVM, como lembra Cantidiano. A empresa estava na disputa para construir a represa de Sobradinho, na Bahia, e era dado como certo de que ela ganharia a concorrência. Mas houve então uma decisão da Chesf anulando a concorrência. A CVM verificou que dias antes de ser anulada a concorrência houve uma grande venda de ações por parte de executivos da companhia. "Foi feito na época um belo trabalho de investigação", conta Cantidiano. Ele representou um investidor que comprou as ações dos executivos da empresa numa ação que moveu pedindo indenização pelo prejuízo na operação. O argumento era simples, seu cliente comprou as ações sem ter todas as informações disponíveis. Hoje a prática de "insider" está previsto no Código Penal. "Isso é um estelionato porque estou vendendo gato por lebre", diz Cantidiano. Mas o fato é que é muito difícil provar a prática de "insider". "Só é possível provar 'insider' se houver confissão ou algo muito eloqüente", diz. Mesmo em mercados mais desenvolvidos, como o americano, conseguir provas contra um "insider" não é uma tarefa simples. Um dos mais famosos casos foi o da apresentadora americana de TV, Martha Stewart. Martha e seu ex-corretor Peter Bacanovic foram condenados no ano passado. A condenação, no entanto, foi por perjúrio e obstrução à Justiça em um caso de uso de informação privilegiada, e não propriamente pela utilização da informação que levou a apresentadora a vender suas ações na empresa de biotecnologia ImClone, presidida por seu amigo Samuel Waksal, antes da desvalorização dos papéis. Atualmente o maior caso de insider sendo investigado pela CVM envolve negociações com ações da AmBev, a gigante nacional de bebidas que foi vendida à belga Interbrew no início do ano passado. Também na época de criação da AmBev, quando a Brahma comprou a Antarctica, a operação foi alvo de investigação pela CVM por conta da suspeita de que detentores de informação privilegiada operaram no mercado com as ações das empresas. A investigação neste caso, contudo, foi interrompida pela realização de um termo de compromisso (instrumento por meio do qual a pessoa fiscalizada, que esteja cometendo ou tenha cometido algum ato ilícito, alguma irregularidade, pode, assumindo determinados compromissos, suspender ou evitar a instauração de inquérito administrativo).