Título: A jurisprudência do crime tributário no país
Autor: Joyce Roysen e Davi Tangerino
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"A posição atual dos tribunais superiores afasta a possibilidade de denúncias embasadas só em autos de infração"

Desde o advento da Lei nº 8.137, de 1990, que revogou a antiga Lei nº 4.729, de 1965, que até então regulava a matéria, surgiram no mundo jurídico inúmeros debates, quase todos já pacificados pelos tribunais superiores. Paradigmático para esse assunto é o acórdão exarado pelo tribunal pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) em sede do HC nº 81.611 em 10 de dezembro de 2003, que consolidou o entendimento de que o crime previsto no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 é material - ou seja, para que a conduta seja criminosa é imperiosa a lesão à ordem tributária, ou ainda, mais claramente, a supressão ou redução de tributos devidos. Essa aparentemente singela decisão traz duas implicações no campo jurídico-criminal. Primeiramente, ao contrário do que entendiam diversos tribunais brasileiros, não bastará para a configuração do crime tributário qualquer das condutas-meio apontadas na lei (geralmente fraudes e omissões). Doravante, há que se conjugar a prática fraudulenta enumerada taxativamente na lei e a efetiva supressão ou redução de tributos devidos. Sem um ou sem o outro inexiste crime contra a ordem tributária. Em segundo lugar, tendo em vista que a lesão ao fisco, genericamente considerada, é condição essencial para a prática do crime tributário e que, em face da dicção do Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 142, apenas a administração pode dizer se houve ou não supressão ou redução de tributo, foi forçoso ao Supremo concluir que a ação penal terá que aguardar o fim do procedimento administrativo tributário, quando então estará (ou não) configurada a mencionada lesão. Isso porque é a própria legislação tributária a garantir ao contribuinte a suspensão da exigibilidade do débito tributário enquanto este estiver sendo impugnado por meio dos recursos administrativos próprios, vale dizer, enquanto este não se tornar líquido, certo e exigível. Outro assunto central no debate é a questão da extinção de punibilidade pelo pagamento e a suspensão da pretensão punitiva estatal pelo parcelamento dos débitos tributários. Trata-se de um verdadeiro campo minado, uma vez que no período compreendido entre 1990 e 2003 inúmeros diplomas legais alteraram a matéria. Com a redação dada pela Lei do Refis II, cujo artigo 9º não condiciona temporalmente o pagamento do débito para fazer jus à extinção de sua punibilidade, firmou-se o entendimento de que este pode ser feito a qualquer tempo desde que em data anterior ao trânsito em julgado da sentença. Em outras palavras, pode-se pagar o débito durante o curso da ação penal. A norma referida foi considerada de natureza penal pelo Supremo e, por ser mais benéfica ao réu, retroage, alcançando todos os contribuintes que tenham pagado seus tributos.

O Supremo tem postura mais garantista e impede o contribuinte de ser coagido a pagar valor sem certeza definida

Mais intrincada é a questão do parcelamento por meio da adesão aos programas especiais de recuperação fiscal: Refis e Refis II. O primeiro exigia, em seu artigo 15, que a adesão ao Refis se desse antes do recebimento da denúncia como condição de aplicação da suspensão da pretensão punitiva estatal. Assim, quando a lei entrou em vigor em fevereiro de 2000, atingiu dois grupos diferentes de contribuintes inadimplentes: os denunciados e os não denunciados. Para o segundo grupo, claro estava a exigibilidade da condição temporal. A dúvida surgia se aos que já estavam denunciados e não aderiram ao Refis, não dever-se-ia aplicar o mesmo benefício, vez que só não o fizeram na exata medida em que o Refis não existia. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) sempre refutou essa possibilidade até o julgamento do REsp nº 659.081, em 16 de agosto de 2005, quando o relator Hamilton Carvalhido entendeu ser medida de razoabilidade e justiça considerar como inexiste a condição impossível, fazendo coro ao voto proferido pelo ministro Marco Aurélio em um precedente do Supremo de fevereiro de 2005. Já a lei do Refis II, quando veio a lume, não gerou o mesmo problema: a adesão ao Refis II poderia ser feita durante o curso da ação penal e mesmo assim gerar a suspensão da pretensão punitiva. Coloca-se ainda em aberto quais institutos penais a aplicar para aqueles que aderissem ao programa geral de parcelamento previsto pela Lei nº 10.522, de 2002, após 31 de julho de 2003, data final para o pedido de adesão ao Refis II. De se registrar, ainda, a posição do STJ de que, uma vez efetivado o parcelamento do débito tributário, em data pretérita ao recebimento da denúncia, tem-se a extinção de punibilidade prevista no artigo 34 da Lei nº 9.249, de 1995. Isso porque, segundo o magistrado, o parcelamento cria uma nova obrigação, extinguindo a anterior, pois, equivale à novação da dívida, hipótese a que se deve estender a expressão "promover o pagamento" contida no artigo 14 da Lei nº 8.137/90. Conclusivamente, há que se atentar, porém, às contribuições previdenciárias. Embora a lei do Refis II, em sua norma penal, admitisse a suspensão pelo parcelamento, as hipóteses de parcelamento foram vetadas pelo presidente. Assim, na falta de possibilidade de parcelamento, resta igualmente prejudicada a possibilidade da suspensão. O mesmo se diga da Lei nº 10.522 cujo artigo 14, inciso I, alterado pela Lei nº 11.051, de 2004, vedou expressamente o parcelamento de tributos ou contribuições retidos na fonte ou descontados de terceiros e não recolhidos ao Tesouro Nacional. Todavia, se, de qualquer forma, o fisco tiver de "lege ferenda" deferido o parcelamento, há que se conceder a suspensão, como bem decidiu o ministro Eros Grau no HC nº 85.452. A posição atual da jurisprudência nos tribunais superiores alinha-se à moderna posição de que à sociedade brasileira interessa mais o recolhimento aos cofres públicos dos valores devidos que propriamente a de seus autores. Mais do que isso, afasta a possibilidade de denúncias açodadas, embasadas única e tão somente em autos de infração e imposição de multa, frágil documento fiscal capaz de ser reformado diversas vezes. O Supremo adota, dessa forma, uma postura mais garantista e impede ao contribuinte ver-se coagido a pagar valor cuja liquidez, certeza e exigibilidade ainda não se mostraram definidas para se livrar da ameaça da pena e dos prejuízos advindos de responder uma ação penal. Com isso, confere-se maior conteúdo ético ao direito penal tributário, que passará efetivamente a punir aqueles que atentem contra a ordem tributária e não mais a servir como instrumento de coação e reforço dos órgãos de arrecadação. Ganham os contribuintes, ganham os agentes econômicos e ganha a sociedade, que vê a Constituição Federal se fortalecendo pelos posicionamentos da corte suprema.