Título: Polêmica em torno da nova lei de "lavagem"
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2005, Brasil, p. A2

Duas leis viriam juntas, irmãs gêmeas: a que concederia anistia temporária para repatriação de capitais, como última chance para o brasileiro que remeteu recursos de forma ilegal para exterior regularizar sua vida; e, em seguida, a que altera a atual Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro, com o objetivo de ampliar a lista de crimes tipificados como lavagem, facilitar o confisco imediato de bens de suspeitos e redefinir funções dos órgãos de combate ao crime. A primeira, a da anistia, que na concepção do governo abriria um regime de transição para a segunda, a nova lei de lavagem, a crise política matou antes mesmo de uma proposta final. Não há a menor chance de se falar em anistia para repatriação de capitais, tema controverso pela própria natureza, num clima desses. Já o endurecimento da lei de combate à lavagem pode ficar pior do que se imaginava. Será uma resposta do governo à crise política. Um dos aspectos polêmicos do anteprojeto que pretende mudar a lei de combate à lavagem está logo no primeiro artigo do anteprojeto. Na lei 9.613, de 1998, a atual lei da "lavagem", esse artigo classifica como crime "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crimes (e tipifica cada um)". O anteprojeto, elaborado por uma comissão coordenada pelo Ministério da Justiça, troca a palavra "crime" por "infração penal", e não mais tipifica quais. Portanto, todas. Uma tipificação aberta. E aí, passa-se a incluir a sonegação fiscal como crime antecedente à lavagem de dinheiro. Hoje, para serem acusadas de lavagem de dinheiro, as pessoas ou empresas têm que ter cometido um dos chamados "crimes antecedentes", que a legislação atual lista como sendo tráfico de drogas ou armas, terrorismo, corrupção, extorsão mediante seqüestro ou crime contra o sistema financeiro. O centro da inovação da lei, se aprovada pelo Congresso, seria, portanto, a inclusão de qualquer infração penal como crime de lavagem ou ocultação de bens, incluindo-se, nessa categoria, desde a prática de caixa 2 nas campanhas eleitorais à roubos de carga ou, ainda, qualquer outro tipo de sonegação de impostos. O que divide os especialistas que participam da elaboração do texto final do anteprojeto de lei é o fato de se equiparar crimes de sonegação fiscal com crimes de lavagem, colocando num mesmo patamar quem não recolheu os tributos devidos - e é só dar uma olhada nas listas de empresas do Refis 1 e 2 (parcelamentos de débitos fiscais) para ver que não são poucos - com quem cometeu, por exemplo, crime de narcotráfico. "Será uma pancada política", avalia um dos participantes da discussão no governo, que faz reservas a essa equiparação. Tal pancada, porém, se justificaria para dar à sociedade uma resposta à altura da crise que envolve o Congresso e o Executivo, conforme explica essa mesma fonte.

Crise política enterra idéia da anistia à repatriação

A controvérsia, porém, vai mais longe. Durante o governo FHC, o Congresso aprovou uma legislação extinguindo a punição para quem paga seus débitos com o fisco. Segundo o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, essa iniciativa do parlamento está em linha com a teoria penal moderna, que diz que os danos ao patrimônio, se reparados, desaparecem. Maciel não tem simpatia pela idéia de a sonegação fiscal ser crime antecedente da lavagem de dinheiro. "Já é uma área de fronteira muito discutível o fiscal e o penal", avalia. "A lavagem de dinheiro não necessariamente está ligada a crimes contra a ordem tributária, e vice-versa, e é da maior conveniência que tenham legislações autônomas. Quando se começa a estabelecer uma cadeia de causalidade, é perigoso", diz Maciel. Teria que haver, na nova lei, uma distinção na tipificação do crime, o que foi imposto não-pago por pura sonegação, do que foi imposto não-pago decorrente da montagem de um esquema de sonegação ligado à origem criminosa do dinheiro, advogam assessores oficiais que estão participando da elaboração do anteprojeto de lei, que deve ser enviado em breve ao Congresso. O diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça, Antenor Madruga, explica que a comissão que preparou o anteprojeto da lei de lavagem entendeu, porém, que é mais correto deixar a jurisprudência clarear essa diferença. Ele lembra que o direito penal já dá linhas claras sobre como o juiz deve interpretar. Se a ocultação ou dissimulação de um bem é um meio do crime antecedente para a sonegação fiscal, e não há conduta específicas de lavagem, o indivíduo ou empresa só serão condenados por sonegação. Se além da conduta de sonegação, há conduta autônoma de ocultação, o réu pode ser condenado por ambos os crimes. Como esse é um aspecto delicado, a questão será dirimida durante a discussão da proposta no Congresso. Na avaliação da área econômica do governo, que estudava a possibilidade da anistia - tal como fez a Itália em 2001 - desde janeiro de 2003, abrir a possibilidade de repatriação de capitais com o simples pagamento de uma alíquota "flat", única, de imposto, teria algumas vantagens não desprezíveis, se bem-sucedida: a área econômica passaria a ter a exata noção dos ativos de brasileiros no exterior; os recursos repatriados engordariam ainda mais as reservas cambiais, deixando a economia com blindagem mais robusta contra crises; aumentaria a arrecadação do imposto de renda; e seria um sinal de que o Brasil não pretende ousar em políticas heterodoxas na área cambial (garantindo câmbio flutuante e caminhando na agenda de liberalização do fluxo de capitais). Era, também, uma demanda dos empresários. Em fevereiro de 2003, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) chegou a sugerir formalmente ao presidente Lula algo na linha da anistia, sob a argumentação de que pelo menos uns US$ 25 bilhões da conservadora estimativa de uns US$ 80 bilhões pertencentes a brasileiros no exterior, poderiam entrar no país. Ainda há iniciativas de parlamentares com projetos de lei nesse sentido, mas as chances são zero.