Título: O valor da gorjeta
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2005, Política, p. A6
Em 30 de julho de 2002, data do cheque apresentado pelo dono de restaurantes da Câmara, Severino Cavalcanti era o primeiro-secretário da mesa diretora que comandou a Casa durante os dois últimos anos do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. A Câmara era presidida pelo atual governador de Minas Gerais, Aécio Neves que, segundo o blog do jornalista Jorge Moreno, ligou ontem para solidarizar-se com o deputado. Severino ocupava o terceiro cargo na hierarquia da Mesa. A ocorrência anterior ao exercício da presidência da Câmara não comuta a falta cometida por Severino Cavalcanti, incompatível com o comando da Casa e com o próprio mandato de deputado federal. Empréstimo ou propina, o cheque de R$ 7,5 mil é a materialização da política de favores com que ascendeu de João Alfredo para a Câmara dos Deputados. Foi assim que Biu Relojoeiro, no excepcional perfil traçado pelo escritor pernambucano Raimundo Carrero, saiu da condição de político obscuro de seu Estado para o terceiro cargo da República. Serviu indiscriminadamente a poderosos de seu Estado e a conterrâneos bêbados e indocumentados. Nunca amealhou fortuna com isso, mas fez uma formidável carreira. Alcançou a façanha de chegar à Mesa da Câmara em 1997, durante seu primeiro mandato como deputado federal. E foi pela bem sucedida gestão de seu modo de fazer política que Severino logrou nunca deixar a Mesa até obter os espetaculares 300 votos com que chegou à presidência da Casa. Antes do cargo na gestão Aécio, havia sido 2 ºvice-presidente das duas Mesas presididas por Michel Temer (PMDB-SP), entre 1997 e 2000. Na primeira Mesa petista da Câmara comandada pelo deputado João Paulo (SP), durante os primeiros dois anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva, foi 2º secretário. É improvável que o cheque tenha sido um acidente de percurso na carreira de Severino. Mas também não é aceitável que os integrantes da mesa diretora da Câmara negligenciem o acompanhamento da execução de seu milionário orçamento. O valor do cheque é compatível com a prática dos pequenos favores que aculturou Severino na política brasileira. Mas o orçamento da Câmara pode se prestar a muito mais que isso. E a biografia dos ocupantes de suas secretarias e vice-presidências também. Em 2005 a previsão orçamentária da Câmara é de R$ 2,5 bilhões, o equivalente à dotação de quatro ministérios somados: Cultura, Esportes, Turismo e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Orçamento da Câmara segue sem fiscalização
Com acesso privilegiado à execução orçamentária do Executivo, os parlamentares costumam municiar os jornalistas com os deslizes da administração direta. Serve-se, assim, à guerra de interesses entre o Executivo e o Legislativo. Na mão inversa, não se acompanha a fiscalização sobre os gastos do Legislativo, em grande parte pela inércia da pauta jornalística. Quando o Congresso é o alvo, o interesse limita-se à grita udenista das mordomias salariais, passagens aéreas ou auxílio-moradia. Não se investigam os grandes contratos da administração parlamentar pela mesma razão porque os grandes negócios da República também passam ao largo do Congresso Nacional. Roberto Jefferson tocou de raspão em alguns deles. Obviamente aqueles que lhe interessavam. Foi cassado porque o Congresso Nacional não é o lugar adequado para se obter delação premiada. Se quer realmente fazer o serviço completo, que agora se apresente à polícia. Sem a teatralidade de Jefferson, Severino também escancarou o modo de fazer política na Câmara dos Deputados. Depois do choque de sua eleição e da nomeação do filho, Severino passou um período de lua-de-mel com a opinião pública pela defesa empedernida da derrubada da MP 232. Foi disputado pelas associações empresariais de todo o país e com elas celebrou a derrota do governo. Seu afastamento tornou-se inexorável desde que defendeu a negociação das cassações e a gradação das penas. Esta tem sido a pauta das lideranças políticas de todas as crises por que passou o Congresso Nacional. O político dos favores pecou pela ingenuidade de divulgar o jogo. Foi por isso que apareceu o valor da gorjeta.