Título: "Militância é parte da identidade, como um rap ou uma religião"
Autor: César Felício e Cristiane Agostine
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2005, Política, p. A12

O que pode segurar a filiação petista é a necessidade de pertencer a um agrupamento, ter uma identidade, como no rap ou numa religião. Para a psicanalista Maria Rita Kehl esse sentimento, que define como um subproduto da militância , aumenta a chance do PT segurar seus integrantes no primeiro teste desde a crise, que acontece neste domingo com as eleições internas que vão renovar as direções nacional, estaduais, municipais e locais da sigla. Ao contrário dos militantes, que criticam os dirigentes e poupam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a psicanalista aposta na sobrevivência do partido mas se diz desencantada com o populismo presidencial. Maria Rita, que é simpatizante do PT, deu a seguinte entrevista ao Valor: Valor: Muitos militantes dizem que, apesar da crise e da decepção, não deixarão de ser petistas, como se fosse impossível romper. Isso bastará para o partido sobreviver? Maria Rita Kehl: Este comportamento é um subproduto da militância, que não existe para isso, mas permite que pessoas se agrupem e se sintam pertencendo a algo. A inserção coletiva aumenta a auto-estima, dá sustentação em um país de pessoas desamparadas, nas regiões mais pobres. Não só a militância política, mas outras formas de inserção produzem o mesmo efeito. As pessoas fazem isto também pelo rap, ou pela religião. Passar a integrar um grupo que propõe algo moral, político, também agrega valor a essas pessoas. Para muita gente a idéia de sair do PT produz depressão. É emocional. Eu me sinto assim. O PT faz parte da minha biografia adulta. Sair seria um luto sério. Me constitui como cidadã e como pessoa. Valor: A frustração não acaba com a percepção de que o partido era diferente? Maria Rita: É importante lembrar que o PT não foi um partido cuja origem programática era ética na política. A origem do PT é a de um partido que tinha uma posição na luta de classes, da causa dos trabalhadores. A ética na política foi encampada, mas talvez tenha sido um erro estratégico do PT se colocar como o partido da ética na política, sabendo que nessas condições do capitalismo, a ética proposta é impossível, em nenhum lugar no mundo da democracia. A bandeira mais importante é a da distribuição de renda, da justiça social. A ética na política é conseqüência. Valor: Suas motivações como militante mudaram? Maria Rita: O que altera para mim, e acho que para muitos petistas, é que a luta interna do partido de repente parece muito importante. Para mim o PT era um partido que me representava inteiramente. Hoje sou obrigada a usar muitas nuances no meu petismo. O compromisso é com ideais petistas, valores petistas, mas não é com certas práticas que o partido propõe. Passei um tempo desmobilizada, estatelada, tentando entender, e agora me sinto de novo mobilizada. O PT não pode desaparecer. Se é para surgir outro PT que seja esse PT expurgado dos seus corruptos, dos seus corruptores e de seus defeitos estruturais. Valor: A figura do presidente Lula é ainda muito preservada pelos militantes. Lula tornou-se um mito? Maria Rita: Houve um aumento grande do salário mínimo, o desenvolvimento de políticas sociais que fazem com que quem mais se beneficie do governo Lula são os mais pobres, sem dúvida alguma. Nisso ele é coerente, apesar de sua política econômica. Mas tem outro lado e é esse que critico: Lula tem apostado firmemente em seus discursos em falar com essas camadas da população. Ele é populista atualmente, chora pela mamãezinha, fala num tom paternalista em relação aos pobres. Funciona, mas acho que politicamente é desastroso. Porque ele fica se assegurando de sua popularidade e para isso ele despolitiza o discurso. Na próxima disputa eleitoral ele precisará contar com setores informados da classe média, com os chamados formadores de opinião. Para isso deveria se apresentar de forma mais consistente. Os miseráveis do Brasil não elegem Lula sozinhos. Lula é um presidente eleito através de um partido político, que é o PT. Se ele não contribui para botar ordem no partido, ele se apresentará como figura carismática isolada? Se isso acontecer, vamos retroceder politicamente. Valor: Como a sra. percebe uma possível candidatura de Lula em 2006? Maria Rita: O Lula como figura pública nesse momento me decepcionou. Está desorientado, não está sendo firme. Embora ele fique dizendo "vamos punir", a gente não vê atitudes dele. Se houvesse um candidato forte, carismático, com chances para ser eleito em 2006 e dar continuidade às boas políticas do governo, votaria no outro candidato. Mas não há e o candidato natural continua sendo Lula. Eu votarei nele, com muito menos entusiasmo e alegria do que em 2002, mas acho que esse governo tem políticas que devem ser seguidas. Valor: A denúncia do uso de dinheiro não contabilizado, ou caixa 2 nas campanhas, surpreendeu a sra.? Maria Rita: Não me surpreendeu completamente, porque não sei se é possível fazer uma campanha como as de hoje, com essa farra do espetáculo da mídia e dos marqueteiros, sem o caixa 2. Em 2002 quando fizeram aliança com PL, comecei a participar de um grupo com outros intelectuais para discutir alianças e a campanha e chamamos o próprio Lula. Estavam Chico de Oliveira, Roberto Schwarz, Maria Vitória Benevides, Paul Singer e Paulo Arantes. Ele nos ouviu no Instituto da Cidadania por cinco horas. Falávamos de um tipo de campanha política que despolitiza, que faz um jogo para apelar para a fantasia do eleitor. Ninguém estava pensando em dinheiro naquele momento. Lula ouviu, anotou e depois respondeu que estava decidido a jogar o jogo para ganhar. Surpreendo-me sim com casos de corrupção de pessoas que eram tratados como companheiros em cargos de responsabilidade aceitando benefícios pessoais. Desde o caso Waldomiro Diniz isso me surpreende. E espero que no próximo PED o partido ateste esse fracasso. (CA)