Título: O alvo número 1
Autor: Faria, Tiago
Fonte: Correio Braziliense, 26/04/2010, Brasil, p. 6

CALEM-SE

Segunda parte da série do Correio sobre a censura musical revela que, antes de recorrer ao pseudônimo Julinho da Adelaide,Chico Buarque conseguiu escapar da tesoura graças às referências a Dom Quixote

Quando Chico Buarque de Hollanda subiu no palco do Ginásio de Esportes de Brasília, num sábado frio de 1973, as torcidas do 3º Festival de Música Jovem do Ceub ignoraram as rivalidades típicas de uma competição musical e receberam o ídolo sob fortes aplausos. Após a performance, que ofuscou convidados como Gilberto Gil e Ivan Lins, o cantor falou ao Correio sobre um tema que, naquele junho turbulento, era tratado à boca miúda: o cerco da censura. ¿As músicas totalmente vetadas ficam guardadas para reuniões com meus amigos, que as cantam até cansar¿, afirmou.

Naquela época, os embates entre Chico e os censores eram recorrentes. Algumas vezes, com vantagem para o compositor. O caso da música Sonho impossível, versão de Chico para composição de Mitch Leigh e Joe Darion (Impossible dream), é um exemplo desse jogo de cintura. Com trechos como ¿sofrer a tortura implacável¿ e ¿vencer o inimigo invencível¿, a canção poderia ser interpretada como um apelo contra a brutalidade militar. Mas foi liberada, e sem ressalvas, pela Polícia Federal.

Os motivos da decisão oficial estão em documentos de 4 e 7 de junho de 1973, analisados pelo Correio na segunda parte da série de reportagens sobre como a censura silenciou os músicos brasileiros. O chefe da censura no Rio de Janeiro, Oresto Mannarino, demonstrou preocupação com o conteúdo da letra ¿ que seria declamada no musical O homem de La Mancha, de Ruy Guerra ¿, e a enviou a Brasília. Mas a referência ao clássico Dom Quixote, de Cervantes, salvou o texto da degola. ¿Embora o autor da versão tenha alguns trabalhos passíveis de censura, o presente retrata o sonho, não do autor (que, a nosso ver, delira), mas do `cavaleiro de La Mancha¿¿, observou o censor Joel Ferraz, ao fim de um longo formulário.

A batalha contra o ¿inimigo¿ foi vencida. Mas a inimizade entre o poeta e os fardados era duradoura, e havia começado muito tempo antes. Em setembro de 1966, um dos 16 temas do musical carioca Meu refrão ¿ na boate Arpège, no Leme ¿, Tamandaré naufragou diante das pressões da Marinha brasileira, que a considerou ofensiva à imagem do almirante Joaquim Marques Lisboa. As tensões aumentaram cinco dias após a decretação do AI-5, em 18 de dezembro de 1968, quando o sambista acordou com a polícia dentro de casa. Às sete da manhã, Chico foi levado num carro do Dops (com chapa fria), para o Ministério do Exército, na Avenida Presidente Vargas. Depois de responder a perguntas sobre cenas de peça Roda-viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, foi solto no fim da tarde.

Vinicius: ¿Faça barulho¿ O terreno parecia minado. Autorizado pelos militares a fazer uma viagem à Europa em janeiro (ele se apresentaria numa feira de música em Cannes, na França), se exilou na Itália. Retornou em março de 1970. À época, o amigo Vinícius de Moraes recomendou: ¿Volte ao país fazendo barulho.¿ O poeta respondeu à euforia do governo com o hino Apesar de você. O sucesso radiofônico só foi vetado um mês depois do lançamento, quando uma nota de jornal apontou que os versos ¿apesar de você, amanhã há de ser outro dia¿ sugeriam uma ¿homenagem¿ ao presidente Médici. Os discos que estavam no estoque foram quebrados.

Ainda assim, Chico continuava a responder às ameaças. Composta com Gilberto Gil para o show Phono 73 (organizado pela gravadora Phonogram), a vetada Cálice foi interpretada pela dupla em versão quase totalmente instrumental. Mas a batalha durou pouco: os microfones foram cortados.

A provocação mais bem-sucedida do artista viria com o personagem Julinho da Adelaide. Depois da proibição da peça Calabar, entre 1973 e 1974, Chico notou que seria impossível conseguir aprovação oficial para novas canções. Daí o parto acelerado de Júlio César Botelho de Oliveira, o autor invisível (mas falastrão) de Acorda, amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro. Em entrevista ao jornal Última hora, o sambista Julinho contou que era filho de uma mulher da favela, Adelaide de Oliveira, e tinha um meio-irmão louro chamado Leonel. ¿Não devo nada ao Chico Buarque nem ele deve nada a mim. Eu sou é pragmático¿, admitiu.

O disfarce foi descoberto ainda em 1975, em reportagem do Jornal do Brasil. Depois, a Polícia Federal passaria a cobrar, com as letras submetidas à censura, cópias dos documentos do músico. Processos analisados pelo Correio mostram que, nos anos 1980, as canções do compositor já não sofriam restrições da censura. O apelo bem-humorado de Julinho contra a truculência policial, no entanto, ficaria registrado no disco Sinal fechado, de 1974: ¿Chame o ladrão, chame o ladrão¿¿

O drible de Valle

Na capa do disco Previsão do tempo, de 1973, um homem barbudo submerge em uma piscina. Os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle acreditavam que aquela imagem era um símbolo forte para a resistência aos métodos violentos do regime militar. Ela representava à perfeição o espírito de um álbum que, já no título, se assumia como observação de uma época. Enfrentar a sensibilidade dos censores ¿ nem que de forma sorrateira, nas entrelinhas da poesia ¿ era uma causa que unia artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha. A provocação política dos irmãos Valle, no entanto, passou despercebida tanto pela polícia quanto pelos artistas. É um capítulo ainda incompreendido na história da MPB.

Foi numa festa organizada pela gravadora Odeon e pela TV Tupi, em meados de 1973, que os compositores ouviram um conselho de Gonzaguinha: ¿Essa música é uma porrada. Vai dar problema¿, alertou o compositor. O motivo de preocupação era a faixa Flamengo até morrer. Os versos da canção, falsamente ufanistas, retratavam um país que afogava as derrotas do cotidiano em campos de futebol. ¿Eu como um prato a menos, trabalho um dia a mais e junto uns trocadinhos pra ver o meu Flamengo¿, conta o narrador. E festeja, num aceno ao rubro-negro Emílio Garrastazu Médici: ¿Que sorte eu ter nascido no Brasil. Até o presidente é Flamengo até morrer.¿

Nos trechos finais da música, no entanto, o que soa como orgulho patriota aos poucos deixa escapar um fiapo de desencanto. ¿Rogério na direita, Paulinho na esquerda, Dario no comando e Fio na reserva. E o resto a gente sabe, mas não diz. E o resto é pau, é pedra, águas de março ou de abril¿, comenta o torcedor. ¿A gente achou que a música daria uma confusão do cacete¿, admite Marcos. ¿O narrador é o brasileiro totalmente alienado. Os jogadores entram na música como um exército convocado pela ditadura¿, explica o autor, torcedor do Botafogo.

Equívoco histórico Para o espanto dos irmãos, o ¿olé¿ na repressão surtiu efeito tão sutil que, além de não ter recebido nenhum veto da censura, acabou por provocar críticas em relação a um suposto conformismo da dupla. No livro Eu não sou cachorro não (2002), do historiador Paulo César de Araújo, a canção é rotulada como favorável ao governo. ¿Foi uma surpresa quando encontramos a referência no livro. Não é nada disso. Esse foi o nosso verdadeiro drible¿, observa Marcos, surgido na bossa nova e autor de composições como Samba de verão e Viola enluarada.

O curioso é que, antes de Flamengo até morrer, duas letras dos irmãos foram barradas pela PF: Black is beautiful (por conta do trecho ¿Um deus negro que melhore o meu sangue europeu¿, convertido em ¿que se integre ao meu sangue europeu¿) e Mi hermoza (a palavra ¿parir¿ foi substituída por ¿gerar¿). ¿Neste último caso, fomos chamados à censura. Acho que foi aquela Solange (Hernandes) que nos chamou. Ela disse: `não pode passar a palavra parir¿. Perguntamos: então não pode passar a palavra `filho¿? Ela não cedeu¿, lembra o carioca de 66 anos. (TF)

As duas faces de Taiguara

Apesar de inúmeras tentativas, a censura não conseguiu silenciar a revolta de Chico Buarque. Mas esses eram exceções. Os métodos de repressão abafaram por completo os protestos de compositores como o uruguaio Taiguara Chalar da Silva (1945-1996). O ídolo elegante de canções românticas entrou nos anos 1970 com fome de política. Uma guinada que provocou consequências desastrosas. Perseguido pela censura, teve mais de 60 músicas proibidas e, sem dinheiro e endividado, abandonou o país. Retornou em 1976, mas sofreu um novo baque: o disco Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara foi proibido na íntegra. Taiguara (foto) deixou novamente o Brasil e só voltou no fim do regime militar. ¿Esse Taiguara politizado, com preocupações sociais e inimigo da ditadura militar, só ficou conhecido por seus fãs mais ardorosos. Para a maioria das pessoas, existiu apenas o Taiguara romântico de Universo no teu corpo e Hoje, hits do fim da década de 1960 e começo da década de 1970¿, observa o pesquisador Alberto Moby.

Máquina de produzir silêncio

Restrições, recursos, apelos e mudanças até o veredicto: veto ou liberação. Como funcionavam as diversas instâncias da Censura

Tiago Faria

Um dos sucessos mais queridos do repertório de Luiz Melodia, Presente cotidiano por pouco não definhou nos corredores da Superintendência da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Enviada ao Serviço de Censura de Diversões Públicas da Guanabara, em maio de 1973, a música descreveu uma trajetória que, durante todo o período do regime militar, não poupava ninguém: ameaçava ídolos da MPB e anônimos. Como era de praxe, três cópias da letra foram enviadas pela gravadora do artista, a Phonogram, à Polícia Federal. Em muitos casos, os versos de canções que chegavam à PF eram liberados nessa ¿primeira instância¿. Mas não foi o que aconteceu com Melodia. ¿Trata-se de letra musical cuja temática estereotipada envolve em seu bojo o sentimento de contestação, protesto, revolta¿, analisou um técnico da censura, em documento pesquisado pelo Correio. Veredicto: veto total. Inconformada com a decisão, a gravadora recorreu à chefia da Divisão de Censura e Diversões Públicas, em Brasília. Após essa etapa, a canção foi liberada, mas com restrições. A divulgação nas rádios foi proibida. Os fãs do cantor tiveram que esperar cinco anos para ouvir a composição, cujos versos ¿Tá tão ruim, tá tão ruim/ Quem vai querer comprar banana?¿ só apareceram no disco Mico de circo, de 1978. No infográfico abaixo, acompanhe o percurso seguido por artistas na máquina da ditadura.

Entrevista - ALBERTO MOBY (historiador) "Era um jogo de gato e rato"

No livro Sinal fechado: a Música Popular Brasileira sob censura (Editora Apicuri), publicado pela primeira vez em 1994, o historiador carioca Alberto Moby Ribeiro da Silva investiga as semelhanças e diferenças entre a censura no Estado Novo e na ditadura militar. ¿Cada época produz seus combatentes e suas armas. O que torna os dois processos semelhantes é, fundamentalmente, a recusa de ambos os regimes de se aceitarem como antidemocráticos¿, observa. A obra, uma das mais importantes sobre o tema, é uma versão modificada da dissertação de mestrado em história social defendida em 1993 na Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor de ensino fundamental em Angra dos Reis, onde mora, Moby leciona nos cursos de pedagogia, psicologia e administração da Universidade Estácio de Sá.

Antes do AI-5, de que forma a ditadura encarava as canções de protesto? Desconfio que o confronto entre a música popular e o regime só foi de fato sentido pelos militares como ameaça concreta a partir da sucessão de acontecimentos de 1968: a morte do estudante Edson Luís, a Passeata dos 100 mil¿ Até então, a ¿canção de protesto¿ ¿ que era muito mais ¿desafiadora¿ e direta do que a MPB pós-AI-5 ¿ foi relativamente menos perseguida. Basta pensar em músicas como Canção do sal, de Milton Nascimento, Viola enluarada, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, e tantas outras que não foram proibidas. Mas é interessante notar que, ao desaparecer por imposição do regime, esse estilo mais direto de fazer música vai sendo substituído por aquilo que convencionamos chamar de ¿linguagem da fresta¿, tentando ocupar na penumbra intelectual dos censores o espaço deixado pela canção de protesto banida pela ditadura.

Qual foi o auge da censura? Sem dúvida, coincide com o mandato do general Emílio Garrastazu Médici. O presidente usou como biombo a conquista do tricampeonato mundial de futebol e a vinda definitiva da Copa Jules Rimet para o Brasil (1970), além das vitórias de Émerson Fitipaldi na F-1 (1972 e 1974) para comandar sem muitos obstáculos a repressão policial-militar aos movimentos de contestação ao regime. Com a conivência de parte significativa dos meios de comunicação, permitiu violações aos direitos humanos, com torturas, prisões ilegais, assassinatos, desaparecimentos, condenou pessoas ao exílio ou as forçou à clandestinidade. Num clima como esse é fácil compreender a fúria da censura.

Com a descentralização da censura, como eram resolvidas as divergências entre os censores estaduais e federais? Com a Constituição de 1967, toda e qualquer atividade censória passou a ser atribuição do SCDP, rebatizado para Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Caso houvesse alguma discordância quanto à proibição de uma música, isso deveria ser resolvido informalmente, a partir do jogo de influências políticas, caso fosse do interesse de algum estado. O que me parece pouco provável e, por si só, uma possibilidade rara.

Como funcionava a burocracia da censura? Em primeiro lugar, era preciso que o compositor ou algum representante seu se reportasse diretamente aos agentes federais. Era preciso que, no SCDP, corresse um processo de censura, que consistia em o autor protocolar a canção que devia ser examinada, no encaminhamento da obra a um censor, que emitiria um parecer, que, por sua vez, seria encaminhado a um superior hierárquico, que, finalmente, daria o veredicto final, informando ao interessado da decisão da Censura. Nenhuma canção se transformava em música gravada sem esse processo policial-burocrático. Podia, sim, acontecer de um compositor apresentar sua canção em uma apresentação ao público sem que ela chegasse a ser gravada, mas mesmo isso representava um risco, já que era muito pouco provável ¿ principalmente para os compositores mais visados, como Chico Buarque, Gonzaguinha ou Milton Nascimento ¿ que seus shows não fossem acompanhados por ¿fãs¿ da Polícia Federal. (TF)

Vinicius e Toquinho: Cheiro de pólvora

Primeiro a liberdade, depois a condenação. Atingida pelos ruídos de comunicação da censura, a música Paiol de pólvora, de Toquinho e Vinicius de Moraes, provocou cenas de constrangimento entre os militares. Aprovada pelos censores no Rio de Janeiro, e incluída na trilha da novela O bem amado, a canção foi vetada em São Paulo quando começou a ser transmitida nas rádios. Em 15 de março de 1973, o Departamento de Censura Federal bateu o martelo. ¿Trata-se de um tema de contestação, onde são apresentados desabafos de alguém que está sufocado por um regime que não aceita, o que se comprova quando se retira a expressão `paiol de pólvora¿ de todos os versos. Deixamos de sugerir a liberação, uma vez que a letra atenta contra a Segurança Nacional¿, informa o documento encontrado pelo Correio. A proibição, no entanto, chegou tarde: milhares de discos estavam em fase de distribuição e 20 capítulos da novela haviam sido gravados. A Polícia Federal preferiu, após recurso, liberar o disco da novela, mas proibiu a divulgação da faixa ¿até mesmo pelos alto-falantes das casas de discos.¿ O diretor-geral da PF deu uma advertência ao técnico da censura que liberou a música no Rio de Janeiro.